UMA RAZÃO PARA CONTINUAR


Este é o título do livro agora editado por um jovem escritor português, de pseudónimo Ian, disponível na Amazon e que uso como mote para o pequeno ensaio que se segue. Ao mesmo tempo aproveito para fazer uma pequena divulgação deste livro que é realmente pouco usual no panorama editorial da Lusitânia. Como indicado por ele no prefácio, o objetivo principal do livro é abordar a questão do sentido da vida e se existem razões para continuar a vivê-la. O tom do livro é de questionamento e antidogmatismo. Queria dizer que o livro revela, do meu ponto de vista, um intelecto analítico poderoso e honesto que é pouco frequente observarmos aqui por estas bandas. Nota-se que o autor, engenheiro de formação, tem um treinamento intelectual alicerçado na lógica matemática, mas ao mesmo tempo desenvolveu, com o tempo, como ele próprio confessa no mesmo prefácio, uma perspetiva mais humanista e mais disponível para as outras realidades e factos da vida. É uma prova viva de que, por incrível que possa parecer a alguns, os engenheiros também têm coração.

Independentemente de podermos ou não concordar com ele em certos tópicos, o autor procura sempre argumentar com rigor as suas ideias, mas deixando também a possibilidade em aberto de poder não estar certo. Recomendo este texto a todos aqueles que procuram um livro realmente estimulante, desafiante e ao mesmo tempo com uma certa empatia e tom confessional. Está dividido em três partes organizadas por capítulos e parece-me quase impossível que alguém não encontre nele alguns tópicos que sejam do seu interesse pessoal. Infelizmente ou não, está escrito em inglês, o que só me faz esperar que apareça brevemente uma edição em português para atender àqueles que não leem essa língua. As questões filosóficas abordadas têm sempre em vista os aspetos mais práticos da vida e são ligadas a temáticas muito na ordem do dia como as pensões de velhice, o aumento da esperança de vida, o estado social e a as expectativas, anseios e desafios com que se depara hoje a malta mais nova.

Poucas perguntas, mas muitas respostas diferentes

O autor refere no prefácio que as pessoas mais velhas procurarão talvez respostas mais definitivas do que as que ele dá em relação a certos temas já que desenvolveram com os anos um sentido prático. Ora, não sei se tenho um sentido prático ou não, mas é nessa perspetiva de obter respostas o mais concretas possíveis que elaborei este artigo – que não é de forma alguma uma reposta ou uma alternativa ao livro do Ian, já que no seu livro ele aborda uma série de temas que eu nem sequer toco aqui. Estou apenas interessado aqui na realidade última do mundo e da vida, sem preconceitos e sem grandes cerimónias de escolasticismo de tom universitário ou tão pouco em ser politicamente correto em relação ao que alguns possam pensar de mim. Tento, contudo, manter um tom cordial e respeitoso e não é minha intenção ofender ou sequer atingir alguém em particular. Só faço este aviso prévio porque alguns temas serão porventura melindrosos para algumas pessoas que terão profundamente enraizadas em si ideias opostas às que aqui defendo. Não pretendo, contudo, manter que o que a seguir exponho é a verdade indiscutível. Assumo já aqui que posso estar errado em parte ou no todo. Apenas me parece a verdade mais plausível dada a capacidade humana de observação e análise. Pouco ou nada do que digo a seguir será original, contudo, e é partilhado por vários grandes pensadores ao longo da história. Procuro essencialmente que seja uma excursão racional – isto é, baseada apenas na razão e isenta de qualquer preconceito ideológico, religioso ou moral. Se Deus me der alento, alegria, confiança e sei lá o que mais, espero publicar no formato de livro estas e outras ideias que aqui têm que ser necessariamente compressas, mas que nem por isso foram demoradamente pensadas.

Claro que estou ciente do “cisma” que Kant provocou no fim do século 18 com a sua “Kritik” destinada a pôr um fim a toda a especulação teológica sobre a natureza de Deus, da alma e da “liberdade na natureza” (onde se engloba o livre-arbítrio). Kant argumentava que nada se podia dizer de constitutivo sobre estes três temas pois simplesmente saem do âmbito “da nossa experiência possível”. Quando nada se pode dizer de seguro acerca de uma coisa o melhor é estar calado, portanto, como dizia o Wittgenstein. A minha posição nesta matéria é, contudo, semelhante à de Hegel – a Crítica de Kant deve ser tomada em conta e digerida, mas o conhecimento metafísico ou teológico baseado na reflexão continua a ser legítimo. O método que me parece mais indicado para abordar estes temas é começar com a observação da natureza e dos seres humanos e, a partir daí, fazendo uso da razão e da lógica que nos foram dadas, tentar inferir as propriedades possíveis acerca daqueles objetos. De resto, em que sentido só podemos conhecer alguma coisa se este se referir apenas a objetos da experiência possível? Em que sentido, por exemplo, é legítimo dizer que um objeto de quatro dimensões faz parte da nossa experiência? Sabemos que somos constitutivamente incapazes de observar ou desenhar um objeto quadridimensional e, contudo, em matemática, o uso de objetos N-dimensionais é algo de trivial. A nossa razão permite-nos generalizar uma esfera 3-D para uma esfera 4-D e para N-D em geral. O uso destes objetos é perfeitamente, não só legítimo, como essencial em vários ramos da ciência. O nosso próprio universo pode ser uma “bola” 4-D, em que nos podemos movimentar em 3 dimensões sem nunca sairmos dessa bola - assim como a Terra é uma bola 3-D em que nos podemos movimentar em duas dimensões sem nunca dela sair. Recorrendo a outro exemplo: suponhamos que ouço o som de três pancadas secas na minha porta, tac-tac-tac, seguidas de silêncio. Espreito pela porta e não vejo ninguém; vou lá fora e ninguém está lá. O que será que aconteceu? O que vou inferir daí? Claro que vou inferir que foi alguma pessoa que bateu à minha porta, apesar de não ter qualquer prova evidencial disso. Mas, podia dizer o Kantiano, não terá sido um cão ou um gato? ou não poderá ter sido qualquer coisa, ao fim e ao cabo? Em teoria sim, pode ter sido qualquer coisa. Mas posso dizer com 99% de certeza que tudo indica que foi uma pessoa, pois animais não batem assim e chuva não era certamente.

Do mesmo modo, as supostas demonstrações de Kant de que a eventual existência de Deus, de uma alma imortal e do livre-arbítrio podem ser provadas quer na positiva quer negativamente - o que só demonstra que qualquer prova deste tipo é inválida - não são legítimas, no sentido de serem formalmente confusas e não obedecerem ao rigor lógico que hoje em dia está disponível. Mais à frente, mostro que uma demonstração positiva da existência de uma causa incausada do universo aparece como essencialmente válida bastando para isso a aceitação de alguns pressupostos que parecerão evidentes para a generalidade das pessoas.

O tema com que começo é que justificação existe para vida como ela é; se esta vale a pena ser vivida; se a vida é algo de bom em si e apenas em si. Como é que um ser humano consciente, autoconsciente, dotado de inteligência e capacidade de análise responde à velha questão “de onde viemos, o que fazemos aqui e para onde vamos?”. O tema é, portanto, tão antigo como a humanidade. Mas as respostas foram sempre diferentes de época para época, de lugar para lugar. As respostas “oficiais” a estas questões têm sido dadas ao longo da história pelas religiões organizadas e são estas respostas que tendem a ser absorvidas pela massa da população. Por outro lado, as respostas de filósofos e cientistas tendem a ganhar a simpatia de um número mais restrito de pessoas, mas atualmente, e no culminar de um processo de “secularização” do pensamento com cerca de cinco séculos, vá, cada vez uma parcela maior da população em geral tende a abandonar as respostas oficias das igrejas ou religiões e a alinhar-se mais com as ideias de certos filósofos ou cientistas, quer estes sejam ateus, teístas (ou deístas) ou agnósticos.

Será que existe algo mais?

A primeira questão é se existe mais alguma coisa para lá do mundo que todos conhecemos, algo que seja anterior ao mundo, ou que seja a causa do mundo, mais propriamente. Este é logo o ponto de partida para a divisão mais fundamental: aqueles que afirmam que o mundo (ou o universo, se quisermos) foi criado e aqueles que dizem que o mundo simplesmente existe – apareceu do nada ou simplesmente existe desde sempre, sem que haja uma entidade supranatural que o tenha criado. Estou sinceramente convencido que houve uma evolução ao longo da história do pensamento que nos permite hoje responder a esta questão de uma forma mais rigorosa e segura e não apenas com base na intuição ou em interesses mundanos ligados ao poder ou a uma certa visão pessoal da vida. Parte desta evolução no rigor filosófico no que toca à demonstração da existência ou não de um “criador” veio, verdade seja dita, de dentro da própria igreja católica e outras igrejas cristãs, mas é minha ideia que, precisamente por estarem comprometidos com questões doutrinais dogmáticas, estes pensadores não quiseram ou não puderam levar o seu raciocínio até às suas últimas consequências lógicas. Temos hoje, portanto, uma vasta obra teológica de autores recentes muito boa e com contributos realmente inovadores, que vão para além dos insights dos escolásticos medievais como Tomás de Aquino, por exemplo, [Lonergan, Robert Spitzer, William Lane Crane, Alvin Plantinga, Richard Swinburne e outros] mas que está limitada pelos seus próprios pressupostos (ou preconceitos) de cariz religioso ou ideológico. A minha intenção é, portanto, simplesmente pegar nas ideias destes filósofos e levá-las até às suas últimas consequências lógicas. Se fizermos esse trabalho podemos verificar que ficamos com uma teologia muito semelhante à de Espinosa, conforme exposta na sua Ética e à teologia de Hegel conforme exposta na sua Enciclopédia Lógica. Claro que existem diferenças entre Espinosa e Hegel, mas no que toca às questões que aqui abordo – Determinismo, Livre-arbítrio, Mal, Alma, entre outras - elas são muito parecidas. A teologia destes dois filósofos apresenta-se, além do mais, como muito equilibrada e potencialmente apelativa a um grande número de pessoas, no sentido de não ser niilista como a moderna teoria neodarwinista nem ser antropomórfica como a teologia tradicional cristã (pelo menos no imaginário popular), que adapta a natureza de um eventual criador à natureza humana em função dos seus desejos ou interesses.

Tudo tem uma causa?

Voltando, portanto, à questão se existe mais alguma coisa para lá do mundo que conhecemos, algo que seja anterior ao mundo e que seja a sua causa, que reposta é possível dar a isto? O ponto de partida é a nossa experiência do mundo. Nele observamos que tudo tem uma causa ou explicação. Não conhecemos ou não concebemos nada que não tenha uma causa ou explicação para a sua existência ou para a sua maneira de agir. Isto é, tudo o que conhecemos no mundo é a priori explicável por uma causa ou razão fora de si. A história da ciência é precisamente esta progressiva descoberta das causas e razões das coisas. É por isso inconcebível para qualquer pessoa que alguma coisa que lhe seja mostrada seja apresentada como vindo do nada. Claro que podemos afirmar, como alguns o fazem, que é possível que venha algo do nada. Mas uma coisa é fazer uma afirmação abstrata e outra é identificar em concreto o que é que então vem do nada. E isso essas pessoas não fazem. O que observamos na física nuclear é que um átomo é composto por protões, neutrões e eletrões e que estes últimos, os eletrões, são partículas elementares, isto é, não são compostos por outras partículas mais simples. Mas ninguém afirma com convicção que os eletrões e as outras partículas elementares vieram do nada. A ideia mais amplamente aceite é que existe uma energia primordial que deu origem às partículas elementares, energia essa que estava de alguma forma concentrada naquilo que deu origem à criação do universo – a conhecida teoria do big-bang. Mas de onde veio essa energia inicial do big-bang? Facilmente verificamos, deste modo, que toda a matéria ou energia que conseguimos identificar é imediatamente sujeita à questão “de onde veio?”

Portanto, das duas uma: Ou aceitamos que pelo menos parte da matéria que conhecemos pode vir do nada; ou, então, tem sempre que existir uma causa para a existência do que quer que seja. O problema com aceitar a primeira hipótese – que a matéria pode vir do nada - é que não é uma explicação, mas antes sabe a ignorância. É essencialmente contrária à nossa intuição científica – que tudo tem que ter uma causa. É precisamente a inaceitabilidade desta hipótese que faz com que exista ciência e que esta evolua – o facto de não aceitarmos como resposta para a existência de X que X simplesmente veio do nada. Enquanto não soubermos como apareceu X, qual a sua causa, consideramo-nos ignorantes. E o papel da ciência é precisamente descobrir a causa de X. E é isso que a ciência tem feito e com muito sucesso, se compararmos a sua evolução nos últimos séculos – tudo está sujeito à mesma questão, ao porquê da sua existência ou modo de ser.E progressivamente a ciência responde a essas questões, embora em certos casos demore muito tempo. Dizer, portanto, que o mundo surgiu do nada deixa-nos com a sensação de que isso é o mesmo que dizer que não sabemos de onde veio.

Resta-nos a segunda hipótese – que tudo tem uma causa ou razão para existir. Aquilo que Leibniz designou como “Principio da Razão Suficiente” e que abrevio como PRS. Assumindo a validade e universalidade deste princípio, o próprio big-bang tem que ter uma causa, caso contrário estaríamos a dizer que surgiu do nada e voltaríamos à primeira hipótese (do algo que vem do nada) que, pelo menos por agora, descartamos. Ora, se o big-bang tiver uma causa, qual é a causa da causa do big-bang; e qual é a causa da causa que causou o big-bang? e qual é a causa da causa da causa…? Enfim, temos aqui uma série infinita de causas. Mas se a série de causas fosse realmente infinita isso traria outros problemas. Por um lado, como é possível dizer que existe um número infinito de causas, mas cada causa é um número finito? Isto é, se alinharmos as causas sucessivamente atribuindo um número N à causa de N+1 que por sua vez causa N+2, por mais que formos para trás na série de causas, cada causa é representada por um número concreto e, logo, finito; portanto, se cada causa é representada por um número finito como é que a série de causas é infinita? Temos aqui uma contradição que nos leva a descartar logicamente esta hipótese (o que aqui está em causa é a própria existência real, e não apenas matematicamente conceptual, de um infinito numérico. Ninguém conhece um infinito numérico real e se o começarmos a aplicar à realidade concreta deparamos com contradições como esta. (O conceito de infinito como conceito limite – e não objeto concreto - é contudo bastante útil do ponto de vista da análise matemática. Mais à frente, uso o termo infinito para designar algo indeterminadamente ou maximamente grande, ou uma totalidade). Por outro lado, dizer que existe um número infinito de causas equivale a dizer que não existe uma causa inicial. (Pois se existir uma causa inicial o número de causas é contado a partir daí até ao acontecimento do big-bang. Temos, portanto, nesse caso, um intervalo limitado e finito de causas.) Mas se não existe uma causa inicial então temos essencialmente, na prática, a mesma situação que vimos atrás - de que algo veio do nada - pois não conseguimos nunca identificar a causa primeira.

Portanto, a exclusão lógica de i) que algo pode vir do nada e ii) de uma série infinita de causas, leva-nos necessariamente à hipótese de uma primeira causa para a existência do mundo (quer este seja composto por um ou por múltiplos universos). Ora esta primeira causa, que pode ser também designada por Deus, é uma causa incausada. Tem que ser. Nada a causou, sempre existiu, é autocriada. Mas não contradiz isto o PRS, que tudo tem que ter uma causa? Se tudo tem que ter uma causa como é que a primeira causa não tem, é incausada? A resposta é que o PRS diz que todo o objeto natural tem uma causa. Isto não exclui, portanto, a existência de uma primeira causa que não seja um objeto da natureza. De facto, o que isto nos diz logo é que a primeira causa não pode ser um objeto natural – não é um corpo, pessoa, animal, vegetal, inanimado ou o que for.

Mas o que causou a primeira causa?

Mas não fica na mesma a questão “como, ou como é possível, que exista uma primeira causa?”. Ou “porque é que existe uma primeira causa em vez de simplesmente não existir nada?” Alguns filósofos (ver Inwagen, “Metaphysics”) dizem que esta questão torna o argumento cosmológico da causa incausada que acabamos de dar, não totalmente convincente, pois deixa ainda estas questões primordiais por responder. É, contudo, minha impressão que a existência de uma resposta para a existência de uma primeira causa é algo de contraditório, pois se a primeira causa é incausada, é contraditório encontrarmos a sua causa. Isto é, a existência de uma causa incausada é necessariamente inexplicável, pois se fosse explicável, isso equivaleria a uma causa ou razão para a sua existência. Mas a causa incausada não pode ter causa ou razão, senão não seria a primeira causa, totalmente incausada. Se existisse uma resposta do género, “a causa da causa incausada é …”, ou “a causa incausada existe ou tem que existir porque …”, isso equivaleria a mostrar uma causa para a CI, o que é contraditório, pois a CI não pode ter qualquer causa… ou não seria CI.

A primeira causa é imaterial

Fica assim delineado o chamado argumento (ou prova, embora muitas pessoas não gostem deste último termo) para a existência de uma primeira causa, incausada, do mundo. A questão seguinte é tentar inferir a natureza ou certas propriedades desta causa incausada. Ora, se a primeira causa é incausada isso quer dizer que não é condicionada por nada. Isto é, não existe nada a limitá-la; a ser isto e não aquilo. É, por isso, pura existência, potencial infinito, irrestrito, ilimitado. É também por essa razão que a CI não pode ser material, mas antes imaterial, pois tudo o que é material é limitado, condicionado, finito, tem uma certa maneira de ser. Mas a CI não é isto ou aquilo em concreto – é, reafirmo, ilimitada e irrestrita. A pura imaterialidade da CI é assim uma consequência necessária, mas que não pode ser totalmente intuída por nós, pois não temos conhecimento experiencial concreto de algo puramente imaterial. É contudo algo que penso que qualquer ser humano pode racionalizar a um certo nível já que temos ideia de objetos imateriais (embora não totalmente desligados da realidade material) – uma ideia, por exemplo, é algo de completamente imaterial em si, embora esteja ligada a um cérebro, que é algo de material. Uma forma de intuir a CI será então pensá-la como uma ideia pura, independente de qualquer objeto físico. E, demonstra-se assim que a origem do mundo, a sua causa, de todas as coisas materiais enfim, é uma realidade imaterial, algo talvez de parecido com aquilo a que chamamos de “mental”, mas não estritamente igual, já que a mente que conhecemos está inevitavelmente ligada ao cérebro.

A primeira causa é inteligente ou é apenas uma explosão de partículas que, por acaso, deram origem ao universo?

Podíamos aqui continuar a analisar as propriedades da causa incausada, mas isso tornaria este artigo demasiado extenso. O que me interessa para o que vem a seguir é tentar inferir se esta CI é ou não inteligente. É extremamente difícil dar uma definição de inteligência, até porque podem distinguir-se vários tipos de inteligência, mas creio que o leitor não ficará chocado se a definirmos como a capacidade de organizar, sistematizar ou interpretar os dados da realidade. O ponto é que observamos indiscutivelmente inteligência na natureza. As leis da natureza e as suas fórmulas matemáticas, os seus padrões regulares são sinais impressionantes de uma realidade sistematizada, inteligente. O ser humano e em menor grau outros animais demonstram inteligência. A questão é se esta inteligência surgiu apenas por acaso ou por evolução natural; ou, antes, se é um dado primordial da causa que lhe deu origem. Ora, aqui, estou convencido que se assumirmos que toda a ordem que existe no universo não for totalmente fruto do acaso, então a CI tem que ter pelo menos alguma inteligência. Mas, nesse caso, temos que assumir que a sua inteligência é irrestrita, infinita. Pois, se considerarmos como válido que, como vimo atrás, a CI é potencialidade infinita, não condicionada ou limitada por algo, nada limita ou condiciona essa inteligência. Se Deus, a CI, é inteligente em algum grau então é infinitamente inteligente e não apenas algo inteligente.

As consequências de aceitarmos que a CI tem inteligência infinita são enormes, colossais mesmo. Pois daqui resulta que todas essas grandes questões que sempre assolaram a humanidade, como “se tudo já está determinado”, o problema do Mal no mundo, o livre-arbítrio, a existência de almas individuais, têm explicação neste facto de a CI ser infinitamente, total e absolutamente inteligente – isto é, capaz de organizar toda a matéria, toda a infinidade de objetos naturais do universo até ao mais ínfimo detalhe. A enormidade do tempo e do espaço existe apenas do ponto de vista individual, do ponto de vista de seres minúsculos como nós. Se a CI for infinitamente inteligente não precisa de tempo para criar o mundo, o espaço não é grande nem pequeno; assim como o tempo não é muito nem pouco. O mundo é criado num único ato. Como dizia Lonergan, Deus é um ato único e irrestrito de pensamento. Daqui, não vejo como se possa evitar a conclusão que tudo no mundo, passado, presente e futuro já existem do ponto de vista, na “mente”, de Deus. O determinismo do mundo é inescapável.

Repare-se, se o futuro ainda não existe então tem que ser criado. Mas o futuro é causado pelo presente e passado. Se presente e passado já existem, o que impede o futuro de já existir? Esse futuro está à espera de quê para acontecer? Se a CI é infinitamente inteligente, ao criar os primeiros momentos do mundo, nada a impede de criar todos os momentos, todo o tempo futuro do mundo. Estaria à espera de quê para criar o futuro que não existe? Aqui a resposta só poderia ser “estaria à espera do livre-arbítrio dos agentes do mundo”. Mas se a CI é infinitamente inteligente tem que saber, por definição, tudo o que os agentes vão fazer. Se esses agentes atuam segundo as leis da natureza (físicas, mentais, sociais, etc.) todas essas leis foram criadas e são conhecidas pela CI. Por isso o futuro já existe na “mente” da CI. O futuro é indeterminado do ponto de vista dos agentes do mundo, devido à sua ignorância parcial, e não em si. Se argumentarem, como Plantinga, que Deus deu livre-arbítrio aos humanos porque assim o mundo é mais interessante, pergunto o que é o livre-arbítrio? Qualquer ação (humana, neste caso) ou tem causas explicativas ou não tem. (Ver nota no fim deste artigo) Se tem causas explicativas, então elas podem ser traçadas até à CI e podemos dizer que já estão na CI, eternamente. Se existe livre-arbítrio no sentido que o que a pessoa decide não pode ser traçado a causas prévias, a uma explicação que diga porque é que a pessoa pensou ou agiu de certa forma, que parte da pessoa é uma causa incausada, então a ação da pessoa não tem explicação. Mas se a ação não pode, em princípio, ser explicada pela pessoa em causa ou por outros (um psicólogo, por exemplo) que livre-arbítrio é este senão uma espécie de comportamento aleatório e irracional que é precisamente o contrário daquilo que os que o defendem pretendem que seja? Mesmo que não se aceite a existência de uma CI como aqui a exponho, o conceito de livre-arbítrio nesta forma extrema de causa incausada por fatores externos não me parece defensável.

E sem livre-arbítrio o conceito de uma alma individual, que é uma espécie de causa incausada que é a fonte desse livre-arbítrio, também se torna insustentável. E agora note-se: se tudo o que existe no mundo pode ser traçado até à CI, o mundo não é mais do que a CI. Isto é, a CI não é uma realidade exterior ao mundo, mas o mundo é antes uma parte da CI. Assim, em rigor, a CI não cria o mundo, mas o mundo é antes a manifestação material da CI. É a manifestação da realidade Una da CI através de uma multiplicidade “infinita” de individuações. O mundo não é mais do que a individuação da natureza Única da CI - assim como um romance, uma estória não é mais do que a individuação múltipla da mente, imaginação, pensamento do escritor. O livro é a parte material da estória, mas o criador e a única realidade real da estória propriamente dita é o escritor.

Livre vontade ou livre arbítrio?

Assim, se tudo o que existe no mundo não é mais do que a CI, mais propriamente uma sua manifestação, em que sentido é que se pode dizer que existe “o Mal”? Mal a quem? Se a CI é infinitamente inteligente e existe eternamente no passado, presente e futuro; se a CI é a única última realidade do mundo, fará sentido supor que a CI faz mal a ela mesma? Se a CI é infinitamente inteligente, o “mundo é como tem que ser”, como dizia Hegel; ou “a ordem do mundo não poderia ser de outra forma”, como dizia Espinosa. O mal só existe do ponto de vista individual e não de um ponto de vista global. Quer Deus “crie tudo o que é possível criar”, como defendia Espinosa, quer crie “o melhor mundo possível”, como pretendia Leibniz, tudo o que existe no mundo existe pela necessidade interna da CI – do seu ponto de vista nada existe ao acaso, nada existe de imprevisto – lembremo-nos da analogia com o escritor do livro. A CI é o escritor e nós somos os personagens; mas personagens que finalmente acabam por ter consciência que são personagens de uma história, a história do mundo. Mas não é por nos tornarmos autoconscientes que ficamos desligados ou autónomos da CI. A autoconsciência é apenas a consciência da realidade exterior acrescida da consciência de nós mesmos. Não é pelo facto de termos consciência de nós, de conseguirmos olhar para nós, que nos tornamos independentes das leis de causalidade, ação e reação do mundo. A autoconsciência apenas abre um novo espaço de pensar e agir, mas não corta o nosso elo de causalidade com o mundo.

Além do mais, não se deve confundir “livre-vontade” com “livre-arbítrio”. Uma pessoa faz as coisas de sua livre vontade quando não é coagida por outros a fazê-las – faz por isso o que escolhe e o que quer. Mas a questão é: porque é que a pessoa quer ou escolhe X em vez de Y? Se isto tiver uma resposta que não seja um “porque sim”, ou “porque me apetece” então existem causas para a vontade específica da pessoa, causas essas que remetem para outras causas - inclusivamente causas finais, propósitos ou ideais e não apenas causas a montante. Em determinado momento a pessoa é determinada por uma infinidade de causas físicas, psicológicas e de valores morais que, todas elas, acabam por remeter para causas exteriores à pessoa em si. Assim, quando a vontade da pessoa obedece “livremente” a essas causas não há forma alguma de a pessoa poder eliminar todas as causas por que é determinada e afirmar que agiu independentemente dessas causas – não existe um centro incausado, impermeável, na pessoa – tudo nela é um confluência de causas – e são estas que determinam a sua vontade, pensamento e ação. Quando a pessoa reflete nos seus pensamentos e na suas ações, mesmo assim está a refletir tendo por base um conjunto de causas que a determinam enquanto pessoa que é. É por isso impossível à pessoa abstrair-se de todas as causas que a afetam e dizer que age por “livre arbítrio”. Até porque grande parte destas causas não são sentidas ou conhecidas pela pessoa. Basta pensar na miríade de fenómenos físicos que se passam no nosso corpo em qualquer momento e que afetam inevitavelmente o nosso humor e o nosso cérebro; já para não falar em toda a educação e culturalização que tivemos ao longo da vida e das quais só vagamente conseguimos traçar todas as suas consequências para a formação da pessoa que somos hoje.

O Mal

Em geral, uma pessoa quando a pessoa tem a liberdade/capacidade para executar uma determinada ação X, essa ação tem como consequência a possibilidade dos atos 1, 2, 3, 4, etc. Em geral o ato 4 pode ser mau e os outros bons, por exemplo. Mas para eliminar o ato 4 tínhamos que eliminar os outros bens 1, 2 e 3. Podemos pensar no roubo, na fraude e na mentira, por exemplo, como ações más. E podíamos desejar que as pessoas não a praticassem. Mas nesse caso iríamos eliminar a capacidade de roubar, defraudar ou mentir quando estas ações seriam necessariamente boas – não é difícil pensar em exemplos em que estas ações são praticadas no sentido de produzirem um bem maior. Parece-me que uma pessoa que esteja a morrer à fome e rouba uma maçã de um pomar cometeu uma ação positiva. Muitas vezes, portanto, a capacidade do ser humano em fazer mal está inextricavelmente ligada à sua capacidade de ação e criatividade; quanto maior a capacidade de ação maior o potencial para cometer o mal. Se não existisse certos males no mundo não poderiam haver também certos bens, pois estes decorrem da mesma capacidade de ação. O mundo poderia ter menos mal, mas seria como viver no filme “Pleasantville”. Claro que há muito gente que preferiria viver em Pleasantville. Mas também há muitos outros que abominam essa ideia.

Isto é, dada a capacidade de um indivíduo para fazer a ação X, seria contraditório se X não pudesse cometer o ato 4, reivindicando assim a declaração de Espinosa de que “Deus cria tudo o que é possível criar desde que não seja contraditório”. Por exemplo, num jogo de futebol, dado que os jogadores podem mexer os braços, seria contraditório que não pudessem usar os braços para tocar a bola. O que vemos é que na maioria do tempo, os jogadores abstêm-se de jogar a bola com a mão. Mas existem sempre casos raros (dentro do tempo de um jogo) de jogadores que tocam a bola com a mão. Este é o mal – a falta – no jogo. É uma exceção à normalidade do jogo, mas acontece inevitavelmente dado o potencial incontornável que tem para acontecer e cuja eliminação seria contraditória com a capacidade e liberdade de ação que os seres humanos têm. Assim também com o mal no mundo em geral.

Assim, se a CI é infinitamente inteligente tudo no mundo tem uma explicação e, em particular, todo o mal do mundo, aquilo que percebemos como mal, tem uma explicação lógica. Em particular, parece-me também claro que o Mal resulta do choque de liberdades entre os objetos ou agentes do mundo. Quanto mais liberdade de ação tem um agente mais potencial para fazer mal aos outros ele tem. Por outro lado, quanto mais segurança e previsibilidade existirem menor a liberdade potencial. Liberdade/diversidade estão em contraposição assim com Segurança/estabilidade – mais de um menos de outro. Se o mundo é racional e inteligente, então é regido por leis, a lei da CI, e não por caprichos. Em particular, a enorme liberdade de pensamento e ação com que são dotados os seres humanos faz com que inevitavelmente tenham liberdade para fazer bem e mal. Pois se X tiver só liberdade para fazer o bem, então por definição X não é livre. Mas a história da humanidade é também essa história de ir reinventando o mundo, de tentar torná-lo o melhor possível. Essa aprendizagem é uma grande parte da história do mundo. Por muito que nos custe, o mal é necessário num mundo livre e interessante. O próprio axioma da ação humana – o ser humano age de modo a substituir um estado de coisas menos perfeito por um mais perfeito parece implicar que para existir ação tem que haver uma qualquer espécie de insatisfação ou necessidade. O ser humano só age se for para melhorar a sua situação ou a de outos por quem se preocupa (claro que pode agir deliberadamente para piorar a situação de outras, mas, nesse caso, isso equivale a uma melhoria subjetiva da sua situação). Se o mundo fosse perfeito, no sentido de que todos se sentiriam absolutamente satisfeitos com a sua situação, ninguém sentiria necessidade de agir. E sem ação simplesmente não existiria o mundo como, pelo menos, o conhecemos. A existência do mal, no sentido de contrariedade, infelicidade ou insatisfação é por isso imprescindível para existir ação e mundo.

Se o mundo podia ser melhor porque não o é?

Por outro lado, a pretensão de Leibniz de que Deus escolheu o melhor mundo possível parece-me ter um ponto a seu favor se pensarmos que no grande plano das coisas a situação de normalidade (embora com uma tensão sempre presente) parece ser a mais constante. Em geral, os casos extremos de maldade são relativamente raros. O mundo, repito, parece ser um compromisso entre liberdade/diversidade/poder de ação e segurança/estabilidade previsibilidade. O equilíbrio entre estes dois polos engloba necessariamente elementos dos dois havendo assim mal que poderíamos à partida dispensar, mas eliminando também de passagem a liberdade, ação e diversidade que isso acarretaria. Em geral, penso que será plausível dizer que todo o mal que existe no mundo encontra uma justificação num bem maior. Mas quando o mal nos acontece a nós, não costumamos estar interessados no grande plano das coisas e o que pensamos é que o mundo podia viver perfeitamente sem esse mal, esquecendo-nos que o mundo se move por leis e não por casos ad hoc.

Um mundo só com bem seria insuportavelmente aborrecido e nem sequer seria apreciado pois sem a existência do mal nem sequer existe o conceito de bom ou mau. O grande exercício que todos temos que praticar é perceber que não somos mais do que personagens do grande livro do mundo e que a nossa realidade última não são as nossas personagens, mas sim o escritor que nos criou. Nas palavras de Hegel, a história é a progressiva consciencialização por parte do ser humano de que é Espírito (Espírito é aqui a realidade essencial de Deus, da CI – “o Eu que é Nós e o Nós que é Eu” ). Só esta perceção coloca a nossa consciência para lá do aparentemente inaceitável mal do mundo, “para lá do bem e do mal”, na famosa expressão de Nietzsche. É esta a nossa reconciliação com Deus e com o mundo, sem precisarmos de recorrer aos conceitos de alma eterna, pecado e livre-arbítrio.

Mas se o mundo é o melhor mundo possível então isso quer dizer que não pode ser melhorado? Não. Porque o melhor mundo possível não é um mundo perfeito. Isto porque num mundo perfeito, como notei acima, não há espaço para melhorar. Não haveria, portanto, ação. O melhor mundo possível tem que ser assim um mundo onde existe algum nível de insatisfação com o estado de coisas e onde a evolução segue da experiência e da aprendizagem – num mundo perfeito não haveria aprendizagem, pois já saberíamos tudo. Num mundo perfeito não haveria vontade, pois não necessitaríamos de nada – existiria total satisfação e saciedade. Sem vontade e sem ação, o mundo não seria mundo, seria o nada. Como dizia Hegel, a vontade é a ativação do bem que é eternamente realizado no mundo.

Uma teoria razoável parece-me ser que o mundo pode ser realmente o melhor possível, se tivermos em conta não apenas a nossa circunstância ou o nosso momento atual, mas todas as condições que têm que coexistir e todo o tempo passado e futuro do mundo, que está ligado por toda uma cadeia de causas e efeitos. O que pode parecer mau hoje pode ter uma justificação perfeitamente compreensível e aceitável quando analisado à escala global do espaço e tempo. É daí que os seres humanos, o único ser que tem capacidade para alterar significativamente o seu mundo, vão retirar a motivação para agir e melhorar. Anos à frente a humanidade herdará um mundo já diferente, que evoluiu de certa forma para melhor em certos aspetos e para pior noutros (os erros…). Mas o que ficou nesta transição, foi a história, e experiência e a aprendizagem. E é este lastro da história que permite que o mundo vá evoluindo de uma forma que se pode considerar positiva, apesar dos erros e das desgraças que vão acontecendo pelo caminho. No fim da viagem o horizonte é luminoso, mas o percurso até lá tem alguns dias sombrios e chuvosos; a estrada faz-nos chegar cada vez mais perto do destino, mas também tem as suas curvas perigosas.

Perceber que somos apenas “personagens de uma história” permite-nos aceitar o nosso destino? Penso que sim. Mas aqui cada um terá a sua estratégia pessoal para lidar com esta questão e seria pretensioso da minha parte dizer como os outros lidam com isso. O crescimento, aprendizagem e maturação de cada um permite que cada um descubra por si a resposta a esta questão, se é que a coloca. 

A estratégia tradicional tem sido a crença numa vida eterna no paraíso após a morte biológica. Aqui aponto para uma eternidade diferente, a própria eternidade de Deus, do qual somos uma manifestação. De qualquer modo, a perspetiva de uma vida eterna, mesmo no paraíso, ou numa reencarnação, não é apelativa para todas as pessoas. Alguns de nós pensamos, pelo menos às vezes, que uma só vida já chega e que existe um certo conforto no Nada. O Nada, que é Deus imanifestado, é esse repouso que alguns de nós esperamos. Portanto, após a morte, deixamos de existir como alma (mente) individual e voltamos à essência de Deus, da qual, aliás, nunca saímos.

Mas essa estória de que todo o mal existe para possibilitar um bem maior não serve para justificar todos os males?

Talvez. Mas a nossa aceitação do mundo pode envolver um ponto de vista ligeiramente diferente – o Espinosista. Para Espinosa, esta questão de o mundo ser ou não o melhor mundo possível, é especiosa. Deus cria simplesmente TUDO o que não seja contraditório, e não escolhe aquilo que é melhor ou pior para nós. Nós é que temos que aprender a melhorar a nossa vida e o nosso mundo se quisermos ser felizes. Somo nós que temos que nos adaptar a Deus e não Deus que se adapta aos homens. O “amor intelectual a Deus” de Espinosa é este amor que segue da nossa aprendizagem e conhecimento das leis de causa e efeito do mundo (de Deus) que nos permite aumentar a nossa capacidade de ação e melhorar a nossa situação. Mas repare-se que para Espinosa o homem não tem livre-arbítrio, é apenas “um modo” de Deus. A autoconsciência e capacidade reflexiva do ser humano não são sinónimo de independência das causas que afetam os seus pensamentos e ações. (Espinosa é apenas um personagem do livro do mundo que tem consciência de que tudo o que pensa, sente, diz ou faz, está a ser “escrito” pelo autor do livro.) Aliás, para este filósofo, nem Deus tem livre-arbítrio, pois simplesmente cria tudo o que é possível criar, de acordo com uma espécie de necessidade interna criativa e não através de escolhas ou de vontades. A aceitação ou conciliação de Espinosa com o mundo faz-se por esta via – a gratidão pelo facto de a nossa situação no mundo poder ser melhorada através da nossa experiência, aprendizagem e conhecimento.

De qualquer modo quer o mundo seja o melhor mundo possível quando visto no grande plano das coisas, quer seja apenas o desenrolar de toda a potencialidade criativa da causa incausada, a capacidade que foi dada aos seres humanas de se adaptarem, se defenderem e mudarem o mundo é uma via (progressiva) para tornar o mundo o melhor possível. Mas cada pessoa tem que perceber que o que é melhor para um pode ser pior para outro, sendo que existem “perfeições absolutamente impossíveis”, como por exemplo dois jogadores ganharem em simultâneo uma partida de ténis quando um joga contra o outro. Neste caso como em alguns outros, o sucesso de um é o fracasso de outros, mas a única forma de evitar isto é acabar com os jogos de ténis e outras coisas do género, o que me parece um pouco excessivo.

Fatalismo vs determinismo

Viver num mundo determinista pode parecer estranho, mas como tudo na vida, é uma questão de hábito. De qualquer modo, para nós o futuro está sempre aberto e indeterminado, pois não sabemos o que vai acontecer. Não é por isso muito diferente de um mundo indeterminista.  Implica menos vaidade pessoal, mais humildade e mais tolerância e aceitação dos erros e defeitos dos outros. Não implica também, como apressadamente muitos pensam, a inexistência de um código moral ou de um sistema legal de justiça baseado em leis. Essas leis atuam como regras para definir o que está certo ou errado e têm que ser punitivas no sentido de desincentivarem certo tipo de comportamentos. O determinismo simplesmente não acaba com a responsabilização - o que acaba é com a diabolização. O sujeito X comete um crime e tem que ser punido – essencialmente por duas razões – para enviar uma mensagem aos outros que esse tipo de crimes é punido e, segundo, para impedir que X repita esses crimes, pelo menos num futuro próximo, e que a punição de algum modo sirva para ele “aprender” a não repetir. Num mundo determinista é por isso que existe punição derivada de leis, e não para castigar uma pessoa. O castigo é uma consequência, mas não é o objetivo principal. Na visão cosmológica que defendo aqui, as pessoas são individuações (limitações) de uma infinita inteligência – são por isso inevitavelmente imperfeitas em tudo. Na visão do mundo mais “corrente” as pessoas erram e fazem mal porque são estúpidas e maldosas. Não nego esta última afirmação, mas apenas que o alguém ser estupido ou malvado decorre de outras causas que não esse ente misterioso que é “a pessoa em si” abstraída de tudo o que a faz ser essa pessoa.

Mas, perguntar-se-á o leitor, então se o indivíduo é determinado em tudo, não é injusto estar a castigá-lo por ele ser o que não escolheu ser? Aqui respondo que, em maior ou menor grau, todos somos, pelo menos em parte, algo que não escolhemos ser. Cada um de nós tem defeitos ou imperfeições psicológicas e físicas que nos fazem ser castigados em muitos ou alguns momentos da vida. A punição pode não vir do sistema de justiça, mas vem de outros quadrantes do mundo. Todos somos por isso vítimas daquilo que nos determina, mas somos também sortudos no que toca às coisas boas que temos. É impossível comparar, no mais íntimo, a felicidade de duas pessoas, mas pode ser que haja pessoas que tenham mais sorte do que outros nesta vida. Contudo, cada um tem as suas estratégias de felicidade e de “encaixe” do mundo que o rodeia.

Não se deve é confundir determinismo com fatalismo. O fatalismo diz-nos que independentemente daquilo que eu faça o futuro já está determinado e por isso não vale a pena eu tentar mudar as coisas. Ora, o determinismo aqui exposto não é nada disso – o futuro é determinado pelo passado e presente. O que eu faço hoje vai ter consequências para o futuro. O que o determinismo diz é que “na mente de Deus” todo o passado, presente e futuro existem num só momento e, por isso, o futuro já está determinado. Mas se eu escolher deitar-me na cama e não fazer nada por mim pois “o futuro já está determinado” então o que estava determinado é que eu escolheria deitar-me na cama e não fazer nada por mim. Isto é, o que estava determinado é que eu seria um fatalista e não um determinista. O que quer que eu faça já estava determinado, por isso não há nada que eu possa fazer que contrarie este determinismo, nomeadamente demonstrar que tenho o livre-arbítrio para mudar o futuro, como é o caso de algumas personagens de Dostoievski do seu livro “Os demónios”. Se eu decidir me matar só para provar que tenho livre-arbítrio para me matar, então, do ponto de vista do determinismo, já estava determinado que eu me iria matar só para provar que (não) tenho o livre-arbítrio para me matar. O determinismo não leva, portanto, à inação, pois, para nós, o futuro está aberto, é uma incógnita, e a única escolha que temos é fazer o melhor que pudermos. Novamente, se eu tiver que escolher entre a ação A e a ação B, o fatalismo diz que isso é indiferente ao passo que o determinismo não - se eu escolher A em vez de B o mundo vai ser diferente daquele que seria se eu escolhesse B. Só me resta escolher aquilo que considero melhor.

Nota: Unicidade da Causa Incausada – Deus – e alguns detalhes adicionais:

Demonstração de que a causa incausada (CI) é única: Suponhamos que existem duas ou mais CIs. Chamemos-lhes A e B, respetivamente. Ora, como já vimos, elas são ambas, então, irrestritas, ou infinitas, se assim quisermos, nas suas potencialidades. Mas como é que distinguimos A de B? Para A ser diferente de B tem que haver alguma propriedade ou potencialidade numa delas que não exista na outra. Mas isso é impossível. Pois já vimos que ambas são ilimitadas no seu potencial – têm todas as propriedades que é possível ter.  Então isso quer dizer que nada as distingue uma da outra. Mas, nesse caso, são iguais. Se são iguais são a mesma e só uma, pois uma coisa só se distingue de outra se tiver algo de diferente. Podemos concluir que a causa incausada (CI) do universo é apenas uma. É única.

Além da unicidade da CI, do mesmo modo se obtêm as características da CI de imutabilidade, omnisciência, simplicidade e indivisibilidade típicas dos argumentos cosmológicos. O conceito de livre-arbítrio é o conceito chave da doutrina católica no sentido de possibilitar os conceitos de alma individual autónoma e pecado. E, a partir destes, possibilita os conceitos de confissão, arrependimento, absolvição, vida eterna e paraíso. O conceito de inferno encaixa também obviamente neste sistema doutrinário, embora esteja em declínio. Tudo, porém, no argumento cosmológico elaborado, em grande parte, por escolásticos e estudiosos católicos, aponta para o determinismo do mundo e este como “mera” manifestação de Deus e não como uma realidade separada. Claro que o debate sobre como compatibilizar a omnisciência e “omnipotência” de Deus e o suposto livre-arbítrio dos seres humanos é eterno. Alvin Plantinga conserva a omnisciência de Deus em face do livre-arbítrio dos homens adaptando o argumento consequencialista do jesuíta do séc. XVI Luís de Molina, isto é, Deus será omnisciente no sentido de saber que se um indivíduo escolher A em vez de B, a consequência será C em vez de D, mas a escolha propriamente dita caberá apenas ao indivíduo. O problema com este argumento, como refiro no texto, é que não explica porque é que o indivíduo escolhe A em vez de B. Note-se que não coloco em questão que os indivíduos sejam efetivamente livres, pelo menos em consciência, de escolher A em vez de B. A questão é porque é que o indivíduo escolhe A em vez de B. E isto terá que ter uma ou mais causas, se se pretende que o conceito de livre-arbítrio represente um ato consciente e racional e não acidental. Essas causas, por sua vez, remetem para outras causas e assim sucessivamente até que chegamos a causas que estão completamente fora do controlo imediato do indivíduo. Escusado também será dizer que o conceito de livre-arbítrio não necessita de uma Causa Incausada, como aqui defendo, para ser rejeitado. Uma visão puramente materialista do mundo é também perfeitamente suficiente neste caso, como exemplificado no excelente livro de Sam Harris, “Free Will”.

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