Éramos tão ingénuos. Tão inocentes. Tão crentes numa ordem bondosa e intrínseca do mundo. E isto apesar de vermos as guerras, as hipocrisias, as maldades do quotidiano. 

Acreditávamos ser possível um Mundo melhor. Criamos no progressismo de uma evolução positiva permanente da Humanidade, das gentes e da organização social. Afinal as estradas melhorariam sempre, não era? Apesar das lutas permanentes na política, havia uma espécie de substrato, quase metafísico, de melhoria permanente, com altos e baixos.

Alguns de nós já praticavam o cinismo e uma descrença atávica no Homem. Mas, diziam-no entredentes. Como se fosse algo pesadamente negativo e destruidor de ilusões de terceiros. 

E tinham razão. 

Em 2020, o nosso mundo caiu, esboroou-se numa vereda inclinada para um abismo sem fim à vista. A crença na bondade do sistema terminou irreversível, para muitos de nós, ainda não cínicos. 

Escrevíamos nos blogs, nas redes sociais, alguns faziam livros, romances, reflexão, filosofia. Pensávamos contribuir ou adicionar algo à esfera do pensamento da comunidade. 

Em 2020, a inutilidade de tudo, explodiu diante dos nossos olhos. Passámos a meros átomos num mundo cruel, mau e desumano. Os nossos semelhantes passaram a constituir risco biológico mortal. Beijar, abraçar, conviver, passou a ser actividades de risco. Conversar passou a ser inútil pois a enormidade do sucedido excluía palavras, pensamentos, partilha. Nada do que fizéssemos faria diferença. 

Amizades acabaram para sempre. Grupos desfizeram-se ou tornaram-se inúteis. Casais separaram-se em desacordo com a "epidemia" que tudo determinava. 

Em 2023, estamos atomizados, separados, mentalmente irritados uns com os outros, por milhares de motivos reais e fúteis em simultâneo. Além da epidemia, duas novas guerras, nas quais somos chamados a tomar partido (como se fizesse alguma diferença o que sentimos, achamos, pensamos, sabemos) aumentaram a divisão. 

Já não conseguimos falar com os outros com quem discordamos. A argumentação, o diálogo, o encontro de espíritos terminou como actividade de lazer intelectual. Tudo é uma questão de vida ou de morte. 

Para alguns, o que sucede na Terra é devido ao inorganicismo total, não previsível e imponderável, de um sistema hiper-complexo sem ponto central de origem da maldade reinante. 

Para outros, uma oligarquia domina o curso dos eventos, tentando determinar a vida humana em pontos centrais de controlo. 

As duas visões são incompatíveis. Para os primeiros, reconhecer a existência de uma oligarquia com poder tremendo é a negação da filosofia base de vida. Para os segundos, reconhecer a total inorganicidade do real é estulto e impossível.

E o fosso entre uns e outros agrava-se.  

Para o que viveram os anos 80, tudo é muito irreal. Passámos de um mundo de festa permanente, com bom rock, dança, mulheres e homens bonitos, para um mundo trans de carácter feio.

Para os miúdos  nascidos depois de 2000, esse mundo feio é o seu real. Encontrarão outros modos de conciliar posições? O que pensam sobre o inorgacionismo, ou organicionismo? Ou, pensam, sequer? Os dispositivos que usam estão a destruir-lhes a mente, ou a ajudá-los a melhor conhecer o mundo? E, econtram alguma satisfação nisso, ou cinicamente, apenas desejam ser o próximo influencer com 1 milhão de seguidores de fotos de biquini, praia e caravanas em países tropicais?

Ainda se escreve sobre o Mundo? 

   

     

  


 

 


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