O que é uma Cunha?


Introdução 

Chamamos Economia em sentido lato a uma comunidade de relações de troca. O objeto de troca pode ser qualquer coisa, desde objetos materiais a afetos, a pensamentos, emoções, etc. A isto podemos chamar energia – um ser dá formas de energia e recebe outras. De um ser humano que viva isolado, pode também dizer-se que está inserido numa economia no sentido que usa a energia do meio que o rodeia e esse meio recebe também a sua energia. Isto é mais percetível ao nível puramente físico das necessidades mais básicas, como alimentação, metabolismo e abrigo. Um ser está constantemente a absorver energia do meio que o rodeia e a ceder energia a esse mesmo meio. A energia só é útil para o indivíduo quando é coerente com o propósito do indivíduo que precisa de uma certa energia. Assim, a madeira não é energia no sentido que não se pode comer, mas já é energia no sentido que pode servir para aquecer ou construir um abrigo ou uma mesa, ou uma cadeira. 

Assim, a energia é tudo, tudo no mundo (um sistema de seres individuados) é energia no sentido que pode ser usado por cada indivíduo para satisfazer uma sua necessidade ou propósito. Um chocolate é energia que serve para alimentar o corpo; um afeto é energia que serve para alimentar a mente. 

Cada ser tem uma constituição definida, é um agregado de várias partes que existem numa certa proporção. Cada ser está também num estado de contínua perda de energia – por isso tem que estar constantemente a absorver energia para repor a que perde. O indivíduo está, portanto, sempre num processo ou procura de manter a sua constituição equilibrada. Quando o indivíduo está com certas energias a menos, vai procurá-las; quando está com certas energias a mais vai oferecê-las. Muitas vezes, nem se pode dizer que está com energias a mais ou a menos, mas apenas que está disposto a oferecer uma energia que lhe faz menos falta em troca de uma energia que lhe faz mais falta. Por exemplo, Crusoe pode dar 1 kg de açucar a Friday em troca de este lhe dar um dia de trabalho para construir uma rede de pesca. Neste caso, Crusoe considera que a rede de pesca lhe faz mais falta do que o açucar. Do mesmo modo, uma pessoa pode dar uma galinha a outra para esta última lhe tocar uma peça de música. A troca de energia aqui é de um objeto físico por um objeto mental. Em geral, uma relação conjugal ou uma amizade é uma relação de troca de energias que se assume ser mais estável - aqui mais no domínio dos afetos, emoções e pensamento. 


O que é uma economia 

A todas estas relações de troca entre as pessoas chamamos então uma economia. Como facilmente se vê, numa economia não existe distinção entre compra e venda ou procura e oferta, mas apenas trocas. Não há forma de definir quem é o comprador ou o vendedor na troca de uma galinha por um coelho. Só faz sentido definir o que é a procura e quem está a comprar quando é introduzido o conceito de moeda (ou dinheiro). Neste caso, a procura e a compra é representada por quem está a ceder o dinheiro para receber outra coisa em troca. 

A moeda possibilita também criar preços expressos na mesma unidade ao longo de toda a economia. Dantes, tínhamos apenas preços expressos nas unidades das energias que eram trocadas. Uma galinha igual a 50 feijões, 2 carapaus, 10 maçãs, etc. Não havia forma de responder à questão: “qual é o preço de uma galinha?”, pois esta tinha tantos preços quantas as energias pelas quais era trocada. Com o advento da moeda, agora podemos dizer que uma galinha custa um número definido de unidades monetárias, por exemplo, 10€. O mesmo acontece com todas as outras energias que são cedidas ou adquiridas em relações de troca; tudo agora tem um preço definido na unidade de conta – o euro, o dólar, etc. 

Mas como dizer que o preço de uma galinha é de 10€? Na verdade, existem n preços possíveis num dia para n transações efetuadas nesse dia. Não há razão aparente para que o preço seja o mesmo, 10€, para todas as transações. Contudo, se uma galinha estiver a ser vendida na rua dos bragas a 7€ e na rua das flores a 10€, eu posso ir comprá-la à rua dos bragas e vendê-la a seguir na rua das flores fazendo um lucro imediato de 3€. O aproveitamento destas oportunidades de lucro faz com que o preço da galinha tenda a ser muito aproximado nos vários locais onde é transacionada, pois o aumento da procura na rua dos bragas faz aumentar aí o preço da galinha e o aumento da oferta na rua das flores faz descer aí o preço. Enquanto existir uma divergência de preços existe margem para este lucro certo [claro que pode persistir sempre uma diferença no preço da galinha devido a outros fatores, como o atendimento, o serviço, a distância, etc.] 

A ciência económica estuda propriamente as trocas que são efetuadas através de moeda e que, portanto, têm preços expressos num número. Mas porque é que não são todas as trocas expressas num número que nos diz quantas unidades de uma certa energia é que são trocadas por unidades de outra energia? Vejamos um casamento, ou uma relação conjugal em geral. É uma prática ancestral a colocação de anúncios no jornal a dizer que cavalheiro procura uma senhora para casamento ou para uma relação estável e vice-versa. Porque é que a pessoa que coloca o anúncio não diz quanto paga, assim como quando um jogador vai para um clube, por 3 anos, digamos, é estabelecido à partida o preço que o jogador vai receber (o salário)? Podíamos responder que aqui a sua própria pessoa é já o preço - o cavalheiro procura uma dama e o preço que paga, isto é, o que lhe dá em troca, é a sua própria pessoa e talvez uma parte do seu património. A dama espera receber energia afetiva, emocional e mental e talvez energia material - objetos físicos e dinheiro. [o mesmo raciocínio se aplica se for a senhora a anunciar que está à procura de cavalheiro]. Um preço monetário, aqui, costuma portanto não ser considerado algo de prático, mas nada impede que esse preço não se possa fazer, assim como quando uma pessoa vai trabalhar para uma empresa em troca de um salário, a empresa recebe do trabalhador não apenas o seu trabalho em sentido estrito, mas também a personalidade do trabalhador, e este também recebe, além do salário, as personalidades e o meio ambiente da empresa. 

Do mesmo modo, quando um casal decide ter um filho, sabe também que vai ter que pagar um preço por esse filho – todas as despesas associadas ao seu crescimento e educação, o tempo que têm que abdicar, etc. Do mesmo modo, uma amizade também envolve um preço na medida em que a Gabriela pode achar que o que está a receber da Susana não compensa o que ela está a dar à Susana. A Gabriela pode querer falar mais tempo, mas a Susana está sempre a falar de si, por exemplo. A Gabriela pode então trocar a Susana pela Matilde, em termos do produto “melhor amiga”, se a Matilde lhe oferecer mais tempo para poder falar. 

Do mesmo modo, quando um grupo de pessoas marca um jantar de convívio, cada uma das pessoas que pondera ir ao jantar pondera o benefício (a energia) que daí vai obter com o preço que tem que pagar. Este preço inclui não só o preço do jantar, mas também custos de deslocação, estar com uma ou outra pessoa com quem não simpatiza muito, etc. Os benefícios podem ser vários, desde um momento de descontração, afetividade, discussão de ideias, networking, etc. 

Bom, a ciência económica é o sistema de teoremas interligados que se aplicam a todas as transações  de bens e serviços a preços monetários. Ao compósito bem/serviço-compradores-vendedores chamamos um mercado. À soma de todos os mercados podemos chamar “o mercado”, ou a economia. O mercado é, portanto, um subconjunto de toda a economia em sentido lato. Do que vimos atrás, é também de realçar que o preço monetário é apenas uma parte da energia que está a ser efetivamente trocada. Quando a pessoa vai a um restaurante não está apenas a pagar a comida e a bebida, mas também o atendimento, a localização, o ambiente, a companhia que leva, etc. Uma transação económica está por isso quase sempre ligada a um ato social que transcende a mera troca de um objetivo ou serviço. Quando vou a um café não tenho em conta meramente a bica que vou tomar, mas também os clientes com quem costumo falar, os funcionários, o local em si, e por aí fora – um ato económico é por isso um ato social. Se eu tiver uma empresa, vou escolher as pessoas para trabalhar na empresa não apenas em função das suas aptidões técnicas mas também da sua personalidade ou maneira de ser – posso preferir pessoas mais ou menos faladoras, mais ou menos formais, com mais ou menos sentido de humor, com mais ou menos humildade, com mais ou menos conhecimento de outras pessoas ou outros assunto…O ponto é que a empresa não é simplesmente uma máquina de produzir chouriços, em que numa extremidade da máquina se enfia a carne e na outra saem os chouriços. Não, a empresa é mais um foco, uma unidade social, de confluência de várias energias em que cada uma das pessoas espera receber mais energia do que a que tem que dar. O salário é apenas uma dessas energias. A pessoa até pode aceitar um salário mais baixo se for compensada por outras energias mentais. 


Conclusão 

Se aceitarmos que as pessoas são livres de disporem do seu corpo da forma que quiserem desde que não façam mal aos outros, as pessoas também são livres de cederem e absorverem as energias que quiserem – isso depende da constituição mental e física de cada um, onde não existem duas pessoas exatamente iguais. Assim, uma pessoa pode criar uma unidade social, como uma empresa, e é livre de orientar essa empresa de forma que se coadune com a sua constituição mental e física. A pessoa pode “vender” os produtos à borla, pode colocar preços a que ninguém compra, pode contratar funcionários incrivelmente incompetentes, que ninguém tem nada com isso. O axioma de que cada indivíduo é livre para agir como quiser desde que não faça mal aos outros, tem como consequência necessária que pode gerir a empresa como bem entender desde que não viole contratos ou force as pessoas a fazer o que não querem. Nomeadamente, pode contratar as pessoas que bem entender, sejam elas filhos, enteados, esposos, tias, sobrinhos, primas, amigos, amigos de amigos, etc. A empresa enquanto unidade social, e não máquina de chouriços, está enquadrada nessa comunidade de relações de troca, que mencionei no início, e que é a economia em sentido lato. E por isso, a empresa é o foco de trocas não apenas dos chouriços que vende, mas de topo o tipo de energias que existem entre os seres humanos. O proprietário da empresa vai atuar tendo como base toda essa confluência de trocas de energia que acontecem nessa unidade social – a sua empresa, e vai atuar de acordo com o que lhe parece melhor ou vai de encontro à sua personalidade. 

Dizer por isso que as “cunhas” são inadmissíveis numa empresa e que até são a mesma coisa que os “jobs for the boys” na administração pública, é altamente falacioso e denota uma visão da economia como sendo uma grande máquina de chouriços, onde o gestor nocional dessa grande fábrica de chouriços - o país - deve escolher as pessoas certas para os lugares certos. Aliás, o próprio conceito de “cunha” denota uma visão da economia como sendo algo que devia obedecer a um planeamento central, onde as pessoas são como as peças de uma máquina que devem encaixar nos seus sítios certos, e que todo o empresário que colocar uma peça no sentido errado vive em pecado pois está a empenar a máquina e devia ser punido por isso. Já em relação à administração pública, o conceito de “cunha” é perfeitamente pertinente, pois aí não existe um proprietário definido e, como tal, não existe a liberdade de uma pessoa usar a sua propriedade da forma que bem entende. Mas isto levava-nos para uma outra discussão que tem a ver com o absurdo de o Estado ser empregador de pessoas para além de um certo mínimo que eventualmente poderíamos achar indispensável. E como eu não gosto de escrever artigos longos, não posso prosseguir aqui essa linha de raciocínio.

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