Uma Breve Estória do Mundo
Gostaria então de concluir o meu anterior artigo sobre a possibilidade de reconciliação de surtos de mal extremo no mundo com a existência de um criador universal inteligente ou moral.
Em primeiro lugar importa esclarecer uma coisa: a
questão de Deus é uma questão filosófica e não estritamente religiosa. Quando
alguém vai falar em Deus as pessoas pensam logo que estamos a falar de
religião. As religiões organizadas servem uma função social e preenchem uma
necessidade humana, mas não é disso que me estou aqui a ocupar,
independentemente dos méritos, erros, defeitos e virtudes dessas religiões. Do
que eu estou aqui a falar é uma questão de uma pessoa se centrar ou orientar no
universo. É uma questão eminentemente prática do ponto de vista psicológico. As
pessoas gostam de saber onde estão, em que situação estão. Sabemos que vivemos
num planeta que pertence a um sistema solar que pertence à via láctea que
pertence à constelação tal e por aí fora até que… pertence a um universo.
Existe a possibilidade de haver outros universos ou ter havido ou virem a
haver. Mas a questão é se há uma realidade última – um conceito universal que
abarque tudo o que conhecemos – um criador do nosso universo ou de universos,
caso existam mais. A resposta tradicional a esta questão, do estatuto
ontológico do Homem e da existência de uma realidade última, a que
tradicionalmente chamamos Deus (os hindus chamam Brahman), é que é “um
mistério”, ou seja, não há resposta. Contudo, ao longo da história todos os
grandes filósofos, sem exceção, procuraram sempre obter respostas para esta
questão e todos tinham em comum o facto de quererem conciliar o mundo com a
propósito da vida humana – a felicidade ou o bem.
A teoria atual que quer dispensar o mundo de um
criador desse mundo ou livrar-nos a todos desse criador
A vida evoluiu
por seleção natural dos mais aptos, que, por serem aqueles que melhor se
adaptam ao ambiente envolvente são aqueles que sobrevivem e se reproduzem em
maior número. Só existe é esse pequeno problema de como mesmo os mais aptos
evoluem para espécies diferentes - como é que explicamos as mutações nas
células e no ADN que vão dando origem a novas espécies. Chamamos-lhes “mutações
aleatórias”. O ADN, ao reproduzir-se, cria pequenas variações do seu código
original e umas dão para melhor e outras para pior, sendo que as que são
benéficas em relação ao ambiente envolvente aumentam automaticamente a
capacidade de sobrevivência dos seres vivos que desenvolvem estas mutações. Se
as mutações forem favoráveis, os seres que as herdam tornam-se mais aptos, mais
fortes, mais espertos e, assim, tendem a sobreviver e reproduzir mais. Estas
espécies tornam-se dominantes e continuam a evoluir para novas espécies quando
acontece de novo uma mutação favorável.
Eu quero
concordar com esta descrição da evolução da vida na Terra. Mas algumas questões
assolam a minha aceitação. Então se há mutações favoráveis e desfavoráveis,
como é que existe uma linha clara de evolução? Se as mutações são realmente
aleatórias então não é possível haver uma regressão de uma espécie que estava
mais evoluída? Não podia haver uma regressão das espécies simultaneamente com
uma evolução, sendo que em termos líquidos, não haveria nem evolução nem
regressão, estaria tudo mais ou menos na mesma? Porque é que a força evolutiva
é mais forte do que a força regressiva? Mas calma, há uma resposta convincente
para isso - porque as mutações favoráveis geram seres que se reproduzem mais,
ao passo que as mutações desfavoráveis criam seres que tendem a morrer e a
procriar menos. Assim, os seres que sofrem ou herdam mutações desfavoráveis
tendem a desaparecer, ao passo que que os que herdam mutações favoráveis tendem
a reproduzir essas mutações favoráveis. A força evolutiva é assim mais poderosa
do que a força regressiva.
Ok, parece
razoável. A partir do aparecimento das células, o mecanismo da seleção
natural parece cuidar bem, por si, da evolução para seres com mais capacidade
de ação e inteligência. Mas como é que surge a autoconsciência - a consciência
de que se é consciente? Parece haver aí um salto de grau, uma descontinuidade
que não pode ser tomada em conta apenas por uma mutação genética. Se fosse esse
o caso nós poderíamos identificar quais os genes responsáveis pela
autoconsciência, não?
Portanto, a
seleção natural não parece explicar o aparecimento de autoconsciência. Mas isso
era essencial para validar a teoria, não? Se é a teoria mais consensual, como é
que pode não explicar o facto mais relevante da vida, após o aparecimento da
própria vida, que é um ser ser consciente de que é consciente? Isso é como ter
uma teoria consensual, universalmente aceite, que explica como é que as aves
voam, mas não consegue explicar como voam os aviões. A teoria deve explicar os
dois fenómenos, não?
Ok. Portanto, o
que temos é uma teoria que diz, fazendo uma analogia, que a luz do dia é
causada pelo Sol mas não explica como é que o Sol produz a luz; assim como o
ADN é a causa disto e daquilo mas a teoria não explica como aparece o ADN; ou
diz que a autoconsciência é causada pelo cérebro mas não explica como o cérebro
produz essa autoconsciência.
A teoria da
seleção natural tem um caráter mais descritivo do que ultimamente explicativo
O mecanismo da seleção natural não é uma teoria
explicativa no sentido de que não explica, por si, o mecanismo de reprodução
das células, etc., o mecanismo interior. É apenas uma descrição exterior que
serve como suposto argumento metafísico para a suposta não existência de Deus.
O problema é que esta teoria não é uma teoria específica, concreta que
explica a evolução das espécies e da vida. Isto porque o mecanismo de
seleção natural está praticamente em tudo o que observamos à nossa volta e não
é por isso que é a causa da existência dessas coisas que observamos. O problema
desta teoria é que com a expressão “mutações aleatórias” explica tudo e não
explica nada. Um exemplo:
As
sucessivas versões e mutações de um Renault Megane evoluem no mercado
exatamente também por sobrevivência, seleção natural, reprodução e mutações.
Mas estas mutações no carro não têm nada de aleatório,
são conscientes. Claro que se um hipotético extraterrestre daqui a uns milhões
de anos começasse a desenterrar fósseis de Renaults Megane e não
conhecesse a raça humana nem para que é que servem os automóveis, iria dizer
que eles sofreram mutações “aleatórias” ao longo do tempo. E assim como alguns
modelos de automóvel não sobrevivem no mercado, não têm sucesso, também algumas
coisas que Deus cria direta ou indiretamente não resultam sempre naquilo que
para o ser humano é entendido como perfeição. Mas, no automóvel, as
“mutações aleatórias” resultam de uma decisão consciente de melhorar o
modelo, de inovar, de ir ao encontro dos novos gostos, da procura, etc. As
espécies-modelos do carro que se adaptam melhor ao mercado são assim
reproduzidas através da fabricação de muitos carros individuais dessa
espécie-modelo. Isto é, temos aqui a sobrevivência dos mais aptos em ação.
Aliás, a própria economia de mercado, através do mecanismo da concorrência -
que tende sempre para reduzir os lucros, é um propulsor da inovação (isto é,
“mutações”) no sentido de incentivar a criação de produtos diferenciados que
ofereçam uma vantagem competitiva nas vendas e promova os lucros da empresa.
Se começarmos a
pensar nisso, a emergência de sistemas organizados espontâneos, que obedecem à
descrição da evolução darwiniana, existe em tudo, não apenas na evolução da
vida orgânica. Mas a descrição darwinista é uma consequência de haver
vida ou matéria inteligente e não uma causa do aparecimento de vida ou
matéria inteligente. É extremamente difícil aceitar que vida complexa e cheia
de inteligência e significado apareça apenas através da combinação aleatória de
matéria que não tem já, em potência, essa inteligência. É possível que um
código ADN surja espontaneamente através de choques, combinações aleatórias de
matéria (já nem pergunto de onde vem em matéria, em primeiro lugar)? Repare-se
que o código de uma célula, assim como um programa de computador ou o projeto
de uma casa, um carro ou uma ponte, não é meramente a combinação de certa
matéria básica. Não. Como numa casa, existe toda uma hierarquia onde primeiro
têm que ser construídas as fundações, depois o primeiro andar, depois as
paredes, etc. Tudo na construção de um sistema-casa tem uma ordem e hierarquia
– uma casa ou um carro nunca podem surgir da combinação aleatória de chapa ou
de cimento, nem que estivéssemos 999 mil triliões de anos a ver a chapa e o
cimento a formarem combinações aleatórias.
Uma galinha, se
lhe derem tempo suficiente, acaba por escrever “Os Lusíadas”?
Do mesmo modo,
a teoria evolutiva da linha dura afirma, por analogia, que se dermos uma
máquina de escrever ou teclado a uma galinha, esta começa a bicar as teclas e a
passar os “textos” que daí resultam aos seus descendentes que, através de
mutações aleatórias no texto que lhes foi passado pela mãe-galinha, acabam por
escrever os “Lusíadas”, a obra completa de Shakespeare ou as partituras das
sinfonias de Beethoven. Isto é evidentemente um disparate, já que por mais
tempo que gerações infindáveis de galinhas deem bicadas num teclado, nada mais
vai sair do que “texto” sem qualquer consequência ou significado. A única forma
de obter, em tempo indeterminado, os “Lusíadas” de uma forma aleatória, é
através da programação de um computador que consiga fazer, exaustivamente,
todas as combinações possíveis das letras do alfabeto e outros símbolos
ortográficos. Isto tem que ser programado por um ser inteligente. Caso
contrário, só saem, eternamente, coisas sem significado e, no máximo, aqui ou
ali, uma palavra com significado. A galinha pode estar 1 dia, 1 mês, 1 ano, 1
milhão de anos a bicar no teclado e a passar os textos para os seus pintainhos
que nunca vai sair uma sequência de letras que corresponda aos Lusíadas ou a
uma estória do Harry Potter.
Só uma mudança
ontológica na galinha para um ser racional torna possível a escrita de algo
racional. Contudo, a teoria evolucionista da linha dura diz que as partículas
elementares, se deixadas à solta (já nem pergunto de onde vieram as partículas
elementares), produzem não apenas sistemas organizados, embora mais simples,
como o átomo ou a molécula, como também a célula, que é um sistema
supercomplexo, comparável a uma fábrica de tecnologia de ponta - com uma
complexidade, portanto, idêntica ou superior à das nossas criações mais
sofisticadas. Se as partículas elementares sozinhas constroem uma célula, uma
galinha então, se lhe derem tempo suficiente, também escreve “Os Maias” do Eça
de Queiroz. [*]
Mas o que é uma
explicação satisfatória?
Mas, mesmo
assim, vamos supor que a teoria, um dia, vai conseguir “explicar” tudo, desde o
aparecimento das células e do ADN até ao aparecimento da autoconsciência, no
sentido de oferecer uma descrição satisfatoriamente completa e plausível de que
A causa B, B causa C, C causa D e por aí fora. Em traços gerais: sistemas
físico-químicos (átomos, moléculas) -> células -> órgãos -> consciência
(animais) -> autoconsciência. Vamos supor que estamos satisfeitos com o
mecanismo de causalidade; que estamos convencidos que assim é, tal como quando
vemos uma pedra a bater num vidro e o vidro parte dizemos com toda a convicção
que a causa da quebra do vidro foi a pedra que nele bateu. Será que, nessa
situação, as perguntas acabaram, tudo está explicado? Não. Porque não existe
ainda resposta para duas questões primordiais e que são as questões,
quando se está a discutir a suposta existência de Deus. E estas questões são:
1. O que é que
causa a primeira causa na cadeia de causalidade, A?
2. Porque é que
a causa n causa n+1 desta maneira e não doutra?
Isto é, falta
responder de onde, ou como, apareceu a própria matéria do mundo e da vida e,
adicionalmente, falta responder porque é que X causa Y e não Z. Ou seja, a
teoria só é satisfatória enquanto teoria filosófica e não meramente descritiva,
se nos disser porque é que Y tem de seguir necessariamente de X e não
apenas dizer, a posteriori, que se observa claramente que Y segue de X. Façamos
uma analogia com a descrição do funcionamento de um automóvel. Todas as peças
na mecânica do automóvel têm uma explicação. Se carregarmos com o pé no
acelerador, verificamos que o carro começa a andar mais depressa. Daqui temos
já uma teoria “explicativa” da relação de causalidade entre o acelerador e a
velocidade do carro. Mas isto ainda não explica o mecanismo de causalidade.
Porque é que ao carregarmos no acelerador o carro anda mais depressa? O próximo
passo é descobrir que isso resulta numa entrada maior de combustível para o
motor. Desta forma podemos ir percebendo todas as relações de causalidade entre
as peças do carro até que possamos descrever todo seu sistema mecânico.
Chegados a este ponto pergunto, está tudo explicado, não falta nada? Falta
ainda responder 1) qual foi a primeira causa do aparecimento do carro e 2)
porque é que X causa necessariamente Y.
A reposta a 1 é a ideia, o conceito do carro –
um veículo que se mova sem ser puxado por animais. Desta explicação resulta que
todas as relações de causalidade existem para servir este propósito. O carro
necessita de um motor, o motor necessita de um combustível, o combustível
necessita de um depósito e, para pôr o carro a andar mais depressa, existe um
mecanismo de regulação da entrada desse combustível para o motor, que é dado
pelo pedal de aceleração. Assim, a ideia do carro dá-nos a necessidade inerente
a todas as relações de causalidade entre as peças. Isto é, só a ideia, o
propósito, o conceito ou significado do carro é que realmente explica as
relações, a necessidade das relações de causalidade entre as peças do carro.
Caso contrário, temos apenas uma descrição de um mecanismo de causalidade que
não nos responde à questão “mas porque é que é assim e não assado?”.
(Claro que além da parte mecânica, depois pode escolher-se a cor, os estofos,
os extras, etc., de uma maneira mais ou menos arbitrária – é a parte puramente
decorativa e não estritamente funcional do carro, assim como também podemos
supor que o universo e a vida têm partes meramente decorativas e não
estritamente necessárias)
Estas questões
só acabam quando percebermos o propósito ou significado do automóvel. Do mesmo
modo, mesmo que a ciência explique todas as relações de causalidade no mundo
nunca explica porque é que X causa Y e não Z, se não houver um propósito ou um
significado dado por um sistema mais amplo onde estão inseridos e do qual fazem
parte essas relações de causalidade. Enquanto não se chegar a esse ponto, as
questões nunca param. Novas respostas apenas geram novas questões. Neste
sentido, a economia, enquanto ciência humana, é diferente das ciências
naturais, já que lida com seres eminentemente teleológicos, os seres humanos, que
agem sempre com um propósito. Um ser humano realiza uma ação como meio para
atingir um fim. Daqui, derivam-se todas as proposições sobre o comportamento
económico do indivíduo e, deste último e da interação de todos os indivíduos,
deriva-se o funcionamento agregado da economia e a emergência de uma ordem
racional à qual damos o nome de sistema de mercado. As ciências naturais,
enquanto supuserem que o que estudam não pertence a um sistema mais amplo, o
significado do qual é que dita a necessidade e é a verdadeira explicação das
leis que essas ciências pretendem obter, apenas apresenta descrições e não
verdadeiras explicações.
Mas qual é
então a verdadeira explicação do mundo?
Repare-se que o
mecanismo de seleção natural, enquanto meramente descritivo, pode ser visto
como descrevendo um processo de refinamento dos seres, dos mais abstratos
(átomos e moléculas) até aos mais concretos (células), até aos mais capazes
(animais e finalmente seres humanos). Basta concebermos a primeira causa,
conforme resulta da prova cosmológica da existência de Deus, como
sendo incondicionada, isto é, não restrita por nada exterior a ela. Neste caso,
ela é pura existência, puro poder criativo e vai criar tudo o que é possível
criar, (desde que não seja contraditório, como cavalos, iguais aos que
conhecemos, mas alados). Esta primeira causa vai ser então um processo de
desenvolvimento do potencial para o atual, quer em termos qualitativos
(infinita diversidade de espécies) quer em termos quantitativos (infinita
quantidade de seres de uma espécie). Existe então uma continuidade das espécies
ao longo do tempo e do espaço em cada momento do tempo. Mas como os indivíduos
são limitados e existem num espaço e tempo limitados, existe escassez e luta
por recursos, o que limita a quantidade desses indivíduos, sendo que os mais
capazes são aqueles que sobrevivem e se reproduzem transmitindo assim as
características genéticas e outras aos seus descendentes. O mecanismo de seleção
natural descreve, assim, a emergência, com continuidade entre as espécies, de
um ser mais perfeito a partir do aparecimento de seres relativamente
primitivos, pouco desenvolvidos.
Esta existência
de uma causa primeira cuja atividade intrínseca é o desenvolvimento de todo o
seu potencial de criação, dá-nos assim a necessidade causada por um sistema
cujo objetivo, propósito, pode ser visto figurativamente como o aparecimento de
seres cada vez mais perfeitos, juntamente com a diversidade espacial e temporal
que decorre da necessidade interna de pura criatividade da primeira
causa. Deste modo, todas as relações no nosso planeta, e até no universo, têm
este ponto de referência como a verdadeira causa explicativa das leis da
natureza, e não apenas uma descrição de causas e efeitos que se sucedem sem
aparente necessidade interna. Deste modo podemos explicar a emergência de
certas formas de vida e da própria autoconsciência.
Claro que podem
dizer que explicar a existência do mundo através da existência de uma primeira
causa que é incausada é apenas puxar a questão mais um passo atrás e não
realmente resolvê-la, pois, pergunta-se, de onde vem então a causa incausada? A
resposta é que, por ser incausada, não veio de lado nenhum. Como dizia Tomás de
Aquino, a sua essência é existir, é pura existência. Agora, a questão é se a
existência de uma causa incausada, que é mental, é mais ou menos satisfatória
para a nossa inteligência do que a existência de matéria que surgiu do nada, ou
que sempre existiu (mas se sempre existiu como é que apareceu?). Para mim, a
primeira explicação é totalmente satisfatória, ao contrário da segunda, que não
vejo por onde se lhe possa pegar. Posso perfeitamente conceber a existência de
uma mente original não causada por nada exterior a ela, que é pura existência.
Ao contrário, não consigo conceber a existência de matéria que não foi criada
por nada exterior a ela e que ainda por cima, enquanto estrita matéria, criou
aleatoriamente todo o mundo que conhecemos.
A força da vida é assim a pulsão criativa que cria
tudo o que é possível criar, mas em que os seres evoluem do mais abstrato,
indeterminado, para seres mais concretos e definidos, com mais autonomia e
poder de ação, retendo, contudo, as características básicas dos seres
anteriores, naquilo a que Hegel chamava de um processo de sublação.
Isto é, inicialmente o universo é formado apenas por partículas
elementares que se agrupam num primeiro sistema organizado ou conceito – o
átomo. Os átomos depois agrupam-se e organizam-se através de outro conceito – a
molécula. Depois das moléculas aparecem as células e as primeiras formas de
vida, os organismos unicelulares. A partir daqui dá-se o desenvolvimento para
organismos multicelulares compostos por células, tecidos celulares e órgãos.
Temos o aparecimento, por um lado, dos seres orgânicos vegetais e, por outro
lado, dos organismos animais. Estes animais, posteriormente, evoluem em vários
sentidos, mas destaca-se a evolução de algumas espécies no sentido de um
desenvolvimento da consciência, da capacidade de processar e interagir com o
ambiente em que estão inseridos. Posteriormente aparece o ser humano, que além
de ser consciente, tem também a faculdade de ser consciente de que é
consciente, reflete sobre si e o mundo, começa a julgar-se a si e ao próprio
mundo em que está inserido, fazendo juízos sobre se é bom ou mau, correto
ou errado, verdadeiro ou falso, belo ou feio, justo ou injusto, etc. Isto é, o
ser humano surge como o ser com a capacidade de refletir e ajuizar sobre o seu
próprio conceito de ser humano e sobre o próprio conceito da vida e do mundo em
geral.
Existe assim uma evolução necessária e contínua dos
seres em direção a um ser com mais capacidade de pensamento, ação e destreza
física. Podemos pensar este ser como, figurativamente, atraindo a força da vida
na direção do seu aparecimento. Mas tal imagem não é estritamente necessária.
Basta o impulso vital da primeira causa incausada ser um impulso criativo em
que novos seres com mais poder de ação emergem a partir de seres mais abstratos
e indiferenciados, como a contínua atualização de um potencial que já existe
desde o início.
Ao mesmo
tempo, parece que a lógica da criação é realizada necessariamente em termos
de conceitos e não de indivíduos. Estes últimos são apenas a infinita variedade
de individuações que partilham a essência do conceito. As árvores são
necessárias, mas uma espécie de árvore ou outra não é necessária, a não ser
apenas como expressão do poder criativo de tudo criar da Causa incausada. Mas
como o conceito da árvore já está na sua semente e não se desenvolve
espontaneamente por evolução aleatória, e o conceito do homem adulto já está no
embrião e no bebé - também a inteligência, a criação por conceitos e não apenas
por formas individuais sem qualquer relação inicial umas com as outras, já tem
que estar no início da criação do universo. É a única forma de racionalizar a
emergência de vida inteligente a partir de matéria não inteligente que, só por
si, nunca pode criar vida inteligente. A evolução das formas de vida não é mais
do que o desenvolvimento da vida que já está latente na semente ou no embrião,
mas que é apenas manifestada na idade adulta. É esta também a razão porque
percebemos os fenómenos do universo como estando sujeitos às leis da física e
não o oposto, quer dizer, entendemos que primeiro, hierarquicamente, existem as
leis do universo e que depois os objetos e fenómenos do universo é que se
encaixam nestas leis. Ora, o que é isto senão afirmar que o mundo é criado
essencialmente por conceitos (as leis universais) e não por objetos individuais
sem qualquer relação a priori entre si? Tal como o que está primeiro, o que
move a construção de uma casa ou carro é o conceito, o projeto dessa casa ou
desse carro, e não é a sobreposição de materiais de uma forma mais ou menos
aleatória que dá origem a uma casa ou um carro.
Só conseguimos conceber, portanto, a emergência
de sistemas complexos como os organismos, já para não falar dos átomos e
moléculas, se existir uma inteligência superveniente que organize a matéria e
lhe dê uma direção, um propósito, nem que seja apenas o propósito de continuar
a existir como sistema integrado e que eventualmente seja capaz de se
reproduzir. É necessária pelo menos alguma inteligência inicial introduzida na
matéria. Até quem não gosta da ideia de um Deus criador tradicional, como
Thomas Nagel, por exemplo, reconhece isto.
A força da
vida, a causa da criação, não é, assim, apenas uma máquina geradora de matéria
de uma forma aleatória, mas é possuída de uma infinita inteligência que vai
criando através do desenvolvimento gradual de conceitos que se apoiam e nascem
a partir dos conceitos anteriores. Assim, o ser humano, o ser autoconsciente, é
uma sublação sucessiva dos conceitos de átomos, moléculas, células, organismos,
animais. Por sua vez, cada um destes conceitos é materializado na forma de uma
infinidade de indivíduos agrupados numa infinidade de espécies. Esta imensidão
de indivíduos dentro de um mesmo conceito-espécie, desde indivíduos mais
evoluídos a menos evoluídos, permite que a passagem de um conceito para um
outro conceito superior seja vista como seguindo uma linha praticamente
contínua.
É essa
inteligência primordial da força da vida que se revela num ser finito, o ser
humano, enquanto atualização de um potencial que já existe desde o início; e
não é o surgimento de um ser inteligente que resulta da combinação aleatória de
matéria que nunca teve essa inteligência. A força da vida é assim a mente que
cria e organiza a matéria e não apenas uma força cega que põe a matéria a
mexer-se de um lado para o outro e de onde vai resultar a emergência de seres e
de estruturas orgânicas altamentes complexas e inteligentes.
Assim, o aparecimento
da autoconsciência, a consciência de ser consciente, aparece como uma
inevitabilidade, uma consequência necessária do desenvolvimento dos seres do
potencial para o atual. Na escala da evolução gradual de aparecimento de seres
cada vez mais perfeitos não é lógico, inevitável, que surja um ser que tenha
consciência da sua própria consciência? E não é este ser a própria força da
vida que, materializada num ser específico, toma consciência de si enquanto
sendo a própria força da vida? E não é este ser já algo perto de um ser muito
evoluído – a força da vida que olha para si mesma e percebe que é a própria
força da vida materializada num ser material específico?
Do mesmo modo
podemos responder à questão de porque é que o universo é tão grande?
Muitas pessoas
olham para a infinidade do Universo e perguntam-se que sentido faz um espaço
tão grande sem formas de vida sencientes que deem um significado a toda aquela
matéria que anda para ali perdida. A conclusão que tiram é que dado que todo o
universo que conhecemos não tem vida, exceto o nosso sistema solar, e mesmo
assim num só planeta, é que o universo é apenas uma coleção aleatória de
matéria que, por mero acaso, deu origem a um pontinho de onde surgiu vida
consciente.
Repare-se,
contudo, que há uns séculos ou milénios atrás, a Terra parecia virtualmente
infinita. Hoje é vista como um mero grão de areia na vastidão do universo. É
pequena. E é pequena porque o ser humano é tão grande. Não em tamanho físico,
mas em mental. A capacidade mental do ser humano é virtualmente ilimitada e
assim como rapidamente chegou aos confins da Terra há de chegar também mais
cedo ou mais tarde aos confins do universo. Daqui a uns séculos ou milénios o
universo, cá para mim, vai ser é pequeno e não grande. E talvez aí até se descubra
que podem haver outros universos em simultâneo a este ou universos passados e
eventualmente futuros.
Assim muito
rapidamente, o que é o mundo?
O mundo não pode ser concebido sem indivíduos. Aliás,
é a isso que chamamos mundo. O mundo é individuação. Esta individuação é, ao
mesmo tempo, limitação e escassez. Esta escassez gera necessidade; esta
necessidade gera vontade; e a vontade gera ação para realizar a vontade que
decorre da necessidade resultante da escassez. O mal resulta do choque
de liberdade de ação entre os vários seres individuais. Este choque é
inevitável dada a escassez de recursos, conhecimento, beleza, afetos e
satisfação do ego pelos quais os seres finitos, limitados, anseiam ou competem.
Esta escassez é, contudo, necessária para existir vontade de agir e daí surgir
a própria ação, que é o que faz mover o mundo. Assim, esta necessidade de cada
ser sobreviver e se afirmar nos seus pensamentos, vontades e ações vai entrar
inevitavelmente em conflito com os pensamentos, vontades e ações de outros
indivíduos. Isto é um resultado inevitável de Deus se manifestar no mundo, ou
melhor, de o mundo ser a individuação, desdobramento de uma única força vital
primordial. E, neste aspeto, o mundo há de necessariamente ter sempre
algum mal contido nele, na medida em que não conseguimos satisfazer todas as
nossas necessidades ou somos impedidos de o fazer pela concorrência de outros
seres pelos mesmo fins. Aquilo que consideramos mal moral objetivo, isto é,
aquilo que quase todos concordamos que é um mal, surge quando um ou mais
indivíduos levam a sua liberdade de ação longe demais, passando completamente
por cima da liberdade dos outros indivíduos, ignorando completamente a sua
autonomia – é isto que choca nos casos de mal extremo – a total falta de
empatia e desconsideração com as pessoas a quem se faz mal. Isto acontece em
casos localizados como assassinatos mais ou menos gratuitos ou, em maior escala,
em guerras em que se mata “o inimigo” simplesmente por ser uma pessoa que está
do outro lado da barricada. Quanto maior é a falta de empatia e a
desconsideração pelos outros mais a ação é considerada um mal óbvio, que vai
para lá daquele mal necessário que resulta da simples competição por recursos
escassos.
Evil shall not
prevail
Contudo, a
força do bem prevalece. Isto é, ao longo da história as pessoas têm sido sempre
capazes de, no fim da refrega, reconhecerem o que está certo e o que está mal.
Hoje em dia, a esmagadora maioria das pessoas reconhece que as guerras são cada
vez mais inaceitáveis, por exemplo. Esta distinção entre o que é o bem e o mal,
que é dada com mais clareza nas instâncias de mal extremo, surge precisamente
do reconhecimento implícito que somos todos a mesma forma da vida, a mesma
energia e mente original. É esta mesma força que une toda a humanidade no
sentido de reconhecer que o bem é o que promove o sentimento de unidade e
identidade universal e o mal é o que promove o sentimento de separação entre as
pessoas.
Deus é, por
isso, essa mente e energia primordial que une toda a vida numa só. E o
pressentimento dessa união inerradicável leva-nos a julgar como mal as forças
que promovem a desintegração dessa unidade. Mas o mundo é isso, é individuação,
é a manifestação da força original em todas as suas variedades possíveis, em
todo o seu poder criativo ilimitado. E daí vai sempre resultar choque entre os
indivíduos que representam as inúmeras manifestações dessa força. Mas como os
indivíduos, ao mesmo tempo, pressentem que fazem parte de algo maior do que
eles e que os une a todos, a força do bem, da união, do respeito pelos outros,
existirá sempre. Deus não é, pois, bom ou mau, moral ou amoral, mas Deus é a
bondade em si, pois ele é essa própria união (bond) original que
nos abraça a todos num único Ser. Por isso, o mal manifesta-se enquanto houver
seres individuais, mas não prevalece na medida em que nos reconhecemos parte de
um todo que nos torna um só.
O Mal
O mal natural é o choque entre a liberdade,
capacidade de ação, da natureza e a liberdade dos seres humanos. A
evolução humana permite mitigar cada vez mais estes males na medida em que o
ser humana tem a capacidade de conhecer o mundo e mudá-lo, através da ciência e
da tecnologia. Hoje somos capazes de mitigar os efeitos de terramotos,
incêndios, cheias e doenças; de prever e, em princípio, eliminar a colisão de
um meteoro com a Terra. Isto é, a partir do momento em que a força da vida
assumiu a forma de um ser que tem a consciência de ser a manifestação dessa
própria força, adquiriu também a capacidade de ajuizar e mudar a seu favor os
conceitos anteriores criados pela força da vida sem terem em atenção a
emergência do homem – esses conceitos mantêm-se presentes mas o homem tem a
capacidade de os virar a seu favor ou de mitigá-los caso sejam perniciosos para
ele.
O mal moral é aquele que é feito pelos humanos
uns aos outros. Parte da perceção de que algo é mau resulta apenas da nossa
falta de informação do quadro geral em que decorre a ação. Quantas vezes,
percebendo o motivo real da ação de uma pessoa, mudamos a nossa perceção de que
a pessoa fez algo de errado, para o entendimento de que havia uma razão para o
fazer, ou que essa pessoa, também ela, não se apercebeu ou não teve intenção de
gerar certos resultados. Depois existe o mal percebido como resultando apenas
da nossa falta de compreensão do funcionamento do sistema em que uma ação é
percebida como má. Quantas vezes as pessoas dizem que uma coisa é má apenas
porque não percebem o seu significado, necessidade e até bondade dentro do
sistema em que está inserida, nem sequer percebem que para outras pessoas, até
para os supostos sofredores desse mal, não existe maldade nenhuma aí.
Existe outro tipo de mal, que é feito
propositadamente, mas não é “muito mau” - as pequenas vinganças e crueldades, a
afirmação e sobreposição do orgulho e da vaidade própria, a inveja, os
ressentimentos. Aqui é o ego a falar mais alto, a afirmar-se perante o que o
rodeia, a deixar-se afetar e a ir na onda. É uma sucessão de ações e reações
que só pára quando a pessoa se recolhe em si mesma, reflete e vê que está a ser
estúpida como o caraças. Ou então não consegue perceber que está a ser estúpida
e continua a fazer mal aos outros e a si mesma. É aquele mal que faz parte do
sal da vida, que as pessoas gostam de ver em filmes e romances, porque dá ação
e cria tensão. Tensão essa que em geral é resolvida no fim. Em termos mais
filosóficos e contemplativos, diria que é aquele mal que faz parte de uma certa
estética da vida enquanto ação, que torna possível as estórias com vilões e bandidos.
Esse mal traz a recompensa existencial de poder ser vencido e, portanto, ser
transformado em bem, em vitórias, perante os outros ou nós mesmos.
A evolução do Homo Sapiens
Depois há o mal mais incompreensível, o mal moral
extremo, aquele com que até um verdadeiro filho da p*** fica chocado, porque
até para ele transcende os limites do aceitável. Este mal é relativamente
marginal, isto é, ocorre muito pontualmente em relação àquilo que é a
normalidade do dia a dia – apesar de todos os dias as notícias dos jornais
procurarem afincadamente por ele para captar a atenção dos espectadores. O pior
ainda é o mal extremo praticado em massa como no caso dos genocídios nazis e
comunistas no século passado. Isto pode ser explicado, contudo, como uma fase
de transição do homo sapiens para o que podemos chamar de homo spiritus.
Aceitando as atuais datações mais consensuais da idade da terra e do universo,
o homo sapiens, que surge mais ou menos há 3 ou 4 segundos em termos de um dia
da história da terra e um ou dois segundos em termos de um dia da história do
nosso universo, ainda é uma espécie de animal, mas agora em fase de
desenvolvimento da autoconsciência e do sentido do bem e do mal. Os animais não
têm este sentido. Para eles o bem e o mal apenas podem ser o que os torna
alegre ou tristes – não têm a ideia do bem em abstrato - a lei moral. Da mesma
forma, algumas pessoas ainda não desenvolveram este conceito mais abstrato do
bem, não desenvolveram dentro de si o instinto da lei moral. Esta compreensão
de que a lei moral tem um caminho de desenvolvimento a realizar dentro do homem
ao longo da história, permite-nos perceber porque ainda existem surtos desse
tipo de mal e talvez sempre existam, como é também de esperar que sempre
existam terramotos ou pessoas mortas por animais ferozes. Contudo, a
progressiva internalização da lei moral por parte dos seres humanos dá-nos a
esperança que o mal moral repugnante seja algo que diminua progressivamente de
escala em relação ao que acontecia no passado, como do mesmo modo, a evolução
tecnológica nos permite também diminuir o impacto do mal natural. A
erradicação, contudo, total do mal, tanto moral, como natural, não é previsível
pois isso, em último grau, eliminaria os conceitos de bem, de felicidade e de
valor da vida, já que eliminaria também a morte – o suposto único mal
irremediável.
Razões para achar que o mundo agora está mais
habitável
Atualmente existem no nosso planeta quase oito biliões
de variedades do conceito do ser humano, oito biliões de personagens. Mas este conceito
do ser humano é já um ser moral. Contudo, assim como os automóveis hoje são
muito melhores do que há 100 anos atrás mas ainda têm muito espaço para
evoluir, também o completo ser moral só vai aparecendo no desenrolar da
evolução das individuações desse conceito desde as formas mais rudimentares até
às mais perfeitas. O desenvolvimento moral do homem, pelo menos no que se
reflete nas normas de conduta sociais e nas leis dos estados, parece-me ser
algo de factual. Práticas imemoriais como a descriminação de outras pessoas
pela cor da pele, das mulheres, violência com crianças, a escravatura, a
tortura, a pena de morte mesmo sem provas irrefutáveis, a crueldade com os
animais, a ausência de direitos humanos fundamentais, a aceitação da guerra
como algo de natural e não brutal, são atualmente e apenas recentemente na
história, consideradas socialmente inaceitáveis pela grande maioria das
pessoas. Isto é uma evidência, do meu ponto de vista, de que o ser humano está
de facto a crescer do estado da semi-animalidade para um estado mais
espiritual.
Sobre a
realidade última ou o que parece ser o real realmente real
Esta parece ser
a verdadeira realidade última de tudo - um mundo em que a intenção última de
tudo é a sentiência, em que nesta se pode incluir o pensamento. Isto é que é o
verdadeiro real, o “real real”. A matéria é apenas a expressão da individuação
do mundo, as partes do sistema, a expressão visível, a comunicação e partilha
dessa sentiência original de uns indivíduos para os outros. É a tinta do quadro,
mas de um quadro que já está na mente do pintor. O quadro material é a forma de
o pintor comunicar, partilhar, a sua ideia com as outras pessoas. O real não é
a tinta e a tela (a matéria), mas a ideia do quadro. Ver o mundo como
resultando de uma ideia, a ideia do desenvolvimento progressivo de um potencial
criativo infinito a partir de uma força mental e sentiente, não elimina,
contudo, obviamente os erros científicos. E tal como pensar que os sobreiros
foram feitos para produzir rolhas, os erros de uma interpretação demasiado
antropomórfica sobre o grau de engenharia da força da vida devem ser evitados.
Devemos ter em mente que a força da vida cria por conceitos e, a partir destes,
gera uma diversidade infinita de indivíduos e não ao contrário.
Penso que o
ceticismo de David Hume e os avisos contra o dogmatismo de Immanuel Kant podem
ser apreciados neste sentido – de constituírem um aviso para os erros cometidos
por uma interpretação demasiadamente antropomórfica, à la carte, do
mundo. Mas não há necessidade de atirar fora o bebé juntamente com a água do
banho, e negar que a realidade que percebemos é fundamentalmente diferente da
realidade real, que tudo o que vemos no mundo é uma imposição, projeção da
nossa estrutura mental e conceptual. Não, temos todas as razões para achar que
o mundo e a nossa ideia dele são idênticos, apesar dos erros de interpretação
que fazemos, assim como uma pessoa que sabe escrever dá ocasionalmente erros
ortográficos ou gramaticais. Não é por inserirmos uma régua na água e ela
aparecer torta que vamos dizer que tudo no mundo nos aparece igualmente com
esta forma de régua torta. Não, há coisas no mundo que são deformadas pelos
nossos sentidos, mas que temos a capacidade de corrigir, reconhecer o erro e
conhecer realmente. Se formos até às últimas causas do mundo vemos que estas
são a sentiência e a necessidade de criar, através da inteligência conceptual,
tudo o que é possível criar. Tudo o resto são detalhes derivados destas duas
coisas.
Descartes, por exemplo, a quem é atribuída o problema
de tentar conciliar a existência separada e supostamente ontologicamente igual
da matéria e do pensamento, dá todas as indicações de supor que a mente é
anterior ao corpo, que é a mente que dirige o corpo e não que ambos são
"paralelos": « A mente, ao contrário do corpo, não é composta por
acidentes [atributos vários] mas é uma substância pura». Isto claramente indica
que a mente é algo de original, pois não é formada por mais nada a não ser ela
mesma, ao passo que o corpo é uma composição de outros elementos já existentes.
Por outro lado, Descartes afirma que pode imaginar perfeitamente a mente sem um
corpo e, nesse sentido a mente, ou a alma, é imortal. «A minha essência
consiste inteiramente em eu ser uma coisa pensante [...] Tenho uma ideia
distinta de um corpo na medida em que é apenas uma coisa com extensão, por isso
é certo que eu sou realmente distinto do meu corpo e posso existir sem ele».
Parece-me claro que, daqui, o suposto dualismo cartesiano de que mente e
corpo são duas entidades primitivas que se fundem num determinado ser não tem
fundamento. O corpo é claramente um objeto tomado pela alma para viver neste
mundo e não algo com o mesmo estatuto que a alma: o corpo morre e a alma fica.
Por isso Descartes é um idealista no sentido de considerar a mente como o
elemento primeiro da existência: «De facto, a ideia que eu tenho da mente
humana é de longe mais distinta do que a ideia de qualquer coisa corpórea».
[Extratos do livro “Meditações sobre a primeira filosofia”]
Sobre um Criador
perfeito
Seria chocante
pensar que Deus não age por necessidade e sim por vontade. É este Deus
caprichoso, com vontades, que penso que os ateístas rejeitam veementemente como
causa criadora e motriz do universo. Um Deus com vontade, que beneficia A e prejudica
B, a quem se pode meter cunhas, fazer pedidos, solicitar favores, é atualmente
impensável. Deus é o mundo, é a própria força da vida que está em tudo o que
existe no mundo. Não é um senhor de barba branca que está fora do mundo e a
quem se possa pedir para o nosso clube ganhar este ano o campeonato. Isto não
quer dizer que a oração não tenha significado nem que não seja eficaz. Como
dizia Jude Law no “Jovem Papa”, na oração não pedimos coisas a Deus, mas
falamos com Deus, pedimos apenas para nos mostrar o caminho e a verdade,
pedimos para sermos melhores.
Claro que
podemos pedir pelo bem do mundo, do nosso e dos outros, pois só este facto de
pedirmos já torna o mundo melhor e quanto mais pessoas orarem pelo bem do
mundo, melhor o mundo está, pois tem mais pessoas conscientes do bem geral e
não apenas do seu bem individual. Também é possível que a oração gere uma
qualquer energia mental positiva que possa extravasar e produzir efeitos. É
talvez possível, não sei. De qualquer forma, a oração e a meditação são formas
de contacto consciente com a nossa realidade real, uma forma de sairmos do
nosso ego enfiado neste corpo minúsculo e insignificante quando visto em
isolamento do resto do mundo. Um Deus estritamente pessoal, como percebemos a
pessoa humana, seria um Deus com vontades específicas, e necessariamente causa
de desilusões e raivas, pois vão inevitavelmente acontecer-nos coisas más ou
mesmo muito más, as quais diríamos que podiam ser evitadas por Deus se ele
quisesse. Embora seja possível acreditar que a existência de cada pessoa tenha
o seu sentido ou significado, é mais seguro e razoável acreditar que Deus cria
por conceitos e que os indivíduos são apenas variações, modos desse conceito,
sendo que existem infinitas variedades onde cada uma delas tem partes boas e
más e essas partes más vão afetar inevitavelmente os outros. Mas essas partes
más são o custo de haver continuidade na evolução, liberdade de ação e juízo e,
em último grau, criadoras da tensão que parece ser necessária como motivo da
ação, que é no fundo o mundo – ação.
Deus é assim a lei que é igual para todos e não o
chefe que decide a favor ou contra este ou aquele, conforme as circunstâncias.
Mas, ao mesmo tempo, Deus é amor na medida em que é a união e identidade
primordial de tudo o que existe. E, nesse sentido, Deus é amor infinito, sem
resquícios de individuação ou egoísmo. Quem se sente com Deus ou em Deus,
sente a fonte única da vida, a qual todos somos e partilhamos. Não meramente
uma energia, mas uma força inteligente e sentiente. Ao ficarmos com Deus
ficamos com essa cumplicidade e esse amor eterno, esse perdão e essa salvação.
Ao mesmo tempo,
existindo apenas uma única força da vida, que se manifesta numa infinidade de
seres, todos os seres finitos e mortais são ao mesmo tempo imortais, pois não
são mais do que a própria força da vida, ela mesma – que sempre existiu e
sempre existirá. Eu, por exemplo, não sou o Rui, mas sou a força da vida que se
manifestou concretamente neste objeto humano a que deram o nome de Rui. Mas a
minha realidade maior é a força da vida que habita em mim e não este corpo
efémero em que ela habita, do mesmo modo que a realidade de cada bolha formada
na água não é essa bolha específica mas a água da qual ela foi formada – as
bolhas de água aparecem e desaparecem continuamente mas a realidade que
permanece e da qual essas bolhas são apenas manifestações fugazes é a água em
si.
A bondade de
Deus e pela qual damos graças é também o facto de termos sido criados com
capacidade de melhorar o mundo, de fazê-lo para nós, através da ciência e
tecnologia, medicina, educação, leis. Somos a força da vida a viver para Si e
não fora de Si, como dizia Hegel. A bondade de Deus é a união e
realização de que todos somos Deus, somos a manifestação da força da vida, do
seu pensamento e ação. Deus deu-nos mais motivos de sofrimento porque deu-nos
mais sensibilidade e pensamento, mas também nos deu simultaneamente a
capacidade de melhorar o mundo e mitigar esse sofrimento
Deus não é
perfeito, no nosso conceito de perfeição, nem criou o melhor mundo possível
pois não existe um mundo perfeito - uma expressão matemática ou quantitativa
que possa ser otimizada. O mundo é um equilíbrio de diferentes conceitos,
em que certas determinações implicam sempre as suas negações – mais liberdade
implica menos previsibilidade, por exemplo. Há pessoas que gostam mais de
liberdade, outras que gostam mais de estabilidade. Estes equilíbrios serão
eternamente discutidos e o único a que podemos aspirar é um second best,
pois um bem acarreta sempre um mal. Isto é a divina justiça que resulta
de vivermos num mundo escasso em que toda a ação tem um custo de oportunidade,
aquilo que deixamos de fazer ou ter de modo a fazermos ou termos outras coisas.
Uma causa A em regra produz efeitos 1, 2, 3 bons e um efeito 4 mau. Se
quisermos eliminar o efeito 4 temos que eliminar a causa A e assim perdemos os
efeitos bons juntamente com o efeito mau. O custo de eliminar cirurgicamente o
efeito 4 seria criar um mundo a partir não de conceitos mas progressivamente
mais de regras à la carte, em que deixaria de existir um conjunto de
leis gerais e previsíveis para haver uma descontinuidade nos fenómenos quer
espacial quer temporal. O desejo sexual, por exemplo, (voltando ao
acontecimento com que iniciei a discussão do mal no artigo anterior) é a causa
também do desejo que certos adultos sentem por crianças, tal como existe
normalmente nos animais - em que os pais copulam descontraidamente com os
filhos. Nos seres humanos vemos que isto já é uma raridade, mas seria uma descontinuidade
da evolução a partir dos animais se isto fosse eliminado completamente. Se
virmos esta continuidade no mundo percebemos a presença ainda dos instintos
animais no homem. Aliás, é o homem que torna os instintos animais (alguns)
imorais – e não os instintos animais que fazem o homem ser imoral. Nos animais
não existe moral. Existe apenas alegria ou tristeza e ação em função disso. O
homem, ao tornar imorais certos instintos animais está a proibi-los, mas isto é
uma coisa que não os elimina, apenas atenua e tende a desaparecer - mas apenas
com o tempo, continuamente ao longo do tempo. Por isso penso que a criação deve
ser vista como a evolução contínua até o ser mais perfeito e não como Deus
criando logo o ser mais perfeito, mas deixando nele os vestígios de
seres menos perfeitos. Estes vestígios existem, mas são resultado da evolução
contínua e não de erros de fabrico ou descuido na criação do ser mais perfeito.
Em sistemas
inerentemente sentientes e mentais, como é o caso do ser humano, a perfeição é indefinível
ou inerradicavelmente subjetiva. O que é mais perfeito: uma loira ou uma
morena? Olhos azuis, verdes ou castanhos? Um apartamento ou uma moradia? Um
carro grande ou um carro pequeno? Um cão grande ou um carro pequeno? Vemos
claramente que apenas o contraste, a diversidade e a oposição permitem o juízo
estético ou dizer que isto ou aquilo é melhor ou pior. Sem estes contrastes
teríamos apenas um grande marasmo indiferenciado. O ser mais perfeito apenas
pode ser definido, como sempre o fizeram os escolásticos, Descartes e Espinosa,
como o ser com mais realidade, com mais capacidade de ação. Nesse sentido o
homem é sem dúvida o ser mais perfeito, mas apenas por ser o que contém “mais
realidade”, mais poder de ação - mas que ainda tem espaço para evoluir.
Machina Mundi
A realidade
última do mundo, isto é, tudo aquilo em que se pode subsumir os objetos e ações
do mundo, parece ser o pensamento e a sentiência, como referido em cima. Assim
como derivamos as leis da natureza e da sociedade a partir do comportamento da
natureza e das pessoas, respetivamente, também destas leis podem ser derivadas
as categorias (conceitos ou leis) metafísicas que governam toda a realidade
física e mental. Aliás, na sua “Lógica”, foi algo como isso que Hegel tentou
fazer. O mundo pode ser visto como a evolução necessária a partir de seres mais
ou menos indeterminados até ao aparecimento de seres e sistemas altamente
estruturados, complexos e inteligentes. Se começarmos apenas com um conjunto
indeterminado de objetos materiais, as categorias mínimas pelas quais eles agem
e interagem são algo como “movimento, repouso, impacto e velocidade”. Estamos
então na presença de um sistema, para já, constituído por ações puramente
aleatórias, ao que, em boa verdade, nem se pode chamar um sistema, mas apenas
um conjunto de matéria e fenómenos. Daí podemos evoluir para um sistema em que
já exista atração e repulsa entre os objetos, como é o caso das partículas com
cargas elétricas positivas e negativas. Quando este sistema apresenta uma certa
ordem e estrutura, quando aparece como um todo em que as suas partes funcionam
em função desse todo, temos então o primeiro sistema organizado, onde já se
nota a existência de inteligência, como é o caso do átomo, com a sua relação
necessária entre protões e eletrões. A partir daí, se acrescentarmos as
categorias de fusão, integração e decomposição, temos os sistemas químicos
dados, por exemplo, pelas moléculas. Daqui evoluímos para sistemas que
desenvolvem as categorias de assimilação e metabolismo, e temos os princípios
da vida, aos quais adicionamos a categoria de reprodução. Passamos então dos
sistemas físico-químicos para os organismos - sistemas orgânicos, que trabalham
com um propósito - o de manterem e reproduzirem os seus próprios organismos. Daqui
evoluímos para organismos mais complexos - estáticos (árvores, flores, etc.) ou
animados (animais). Daqui surge a consciência nestes seres, que vai evoluindo
até se atingir o estádio em que aparece um ser consciente de ser consciente – a
autoconsciência – o ser humano.
A evolução do
universo é assim descrita como uma evolução necessária a partir de seres mais
abstratos e indeterminados até chegar a seres autoconscientes e com capacidade
de alterarem e recriarem o mundo à sua volta, devido ao conhecimento de que são
capazes. Finalmente, estes seres reconhecem a própria máquina do mundo em que
estão inseridos e como chegaram ao ponto em que estão – a isto Hegel chamava
“conhecimento absoluto” ou conhecimento da “Ideia absoluta”, que é o próprio
mundo estruturado pelas suas categorias metafísicas. De facto, toda esta
evolução que vimos no parágrafo anterior resulta, pode ser reduzida, à
existência de categorias mentais que estão subjacentes à evolução da matéria –
são as categorias de qualidade, quantidade e proporção (medida); o todo e as
partes, atração-repulsa, substância-modos da substância; causalidade
determinada pelo propósito do sistema (substância); ação-reação, etc. O mundo
material que vemos é, assim, apenas a manifestação, a expressão sensorial, destas
categorias mentais que estão na base de todos os fenómenos e objetos do mundo.
As categorias mentais ou metafísicas existem, pois, “antes” das manifestações
da matéria, são a hierarquia superior da existência e assim a realidade última
do universo, são a estrutura mental da força da vida.
Deste modo,
podemos ver que as cinco forças fundamentais da natureza consideradas pela
Física (cinco, se incluirmos aqui a energia negra; as outras são
eletromagnetismo, gravidade, forças nucleares forte e fraca) não são mais do
que expressões das categorias metafísicas atração/integração versus
repulsa/desintegração. Creio que, por sua vez, todas as categorias metafísicas,
incluindo aqui agora também as categorias sentientes como “desejo, alegria e
tristeza”, podem ser subsumidas numa única grande categoria, que é a fonte
geradora de toda a ação do mundo – a categoria Uno versus Múltiplo.
Esta origina a tensão entre o todo versus as partes, o autocontido e o
dependente, o infinito e o limitado, a “atração para” e a “repulsa de”, a
integração e a individuação, a harmonia e a separação. É esta tensão eterna
entre a unidade primordial da força da vida, que é o Uno, e o desdobramento
desta unidade numa miríade de individuações, o Múltiplo, que causa a fricção
necessária para dar origem ao pulsar da vida, à necessidade de ação - à
necessidade de liberdade e de afirmação individual, por um lado; e à
necessidade de estabilidade, segurança e pertença, de outro lado.
Por isso, a
humanidade vai passar o resto da vida a discutir a dicotomia liberdade versus
segurança percebida, onde uns clamam por mais liberdade e outros por mais
estabilidade (esta é talvez a polaridade masculino-feminino da força da vida).
O compromisso, o equilíbrio entre a liberdade/diversidade e
estabilidade/segurança é na realidade a única e grande discussão que anima e
agita as leis dos povos e das sociedades. E perceber aqui as reais implicações
e o que significa realmente “Liberdade” e “Segurança ou Estabilidade” é a
tarefa que se impõe clarificar.
Nota: As ideias
deste artigo provêm de inúmeras fontes, mas ao leitor que se identifique mais
com elas sugiro procurar os seus fundamentos em Espinosa (“Ética”) e Hegel (“Lógica”), sendo que a metafísica de Hegel deve
ser lida como uma continuação e refinamento das ideias teológicas de Espinosa.
A prova cosmológica da existência de Deus pode ser encontrada em muitos sítios
mas uma demonstração mais cuidadosa é dada, por exemplo, em Spitzer, aqui no capítulo dois, sendo que esta prova é
depois estendida[RS1] pelo argumento
teleológico de Lonergan. Note-se que o facto de a causa incausada ser apenas e
necessariamente uma, e não haver uma multiplicidade delas, é algo
derivado logicamente e não assumido à partida.
[*] Nota ao
texto acima: Um argumento frequentemente usado a favor do surgimento da célula
apenas a partir da combinação "espontânea" de moléculas é a
experiência nos anos 50 de Stanley Miller (então estudante de pós-graduação)
que mostrou que a descarga de faíscas elétricas numa mistura de H2, CH4 e NH3,
na presença de água, levou à formação de uma variedade de moléculas orgânicas,
incluindo vários aminoácidos. O que é estranho é que esta experiência (até
passo por cima do facto de as condições em laboratório não reproduzirem as
condições no planeta há perto de 4 biliões de anos) mostra a formação de
algumas moléculas orgânicas e não de células. E, além do mais, passados quase 70
anos ainda se cita a mesma experiência? Não houve desde aí experiências
semelhantes que permitissem o aparecimento de algo mais aproximado a uma
célula? Não é isto a mesma coisa que dizer, por analogia, que se hidrogénio e
oxigénio se fundem espontaneamente e criam água, então aí está a prova de que o
“pavilhão da água”, no parque da cidade do Porto, também pode surgir
espontaneamente da combinação aleatória de moléculas?
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