Uma Breve Estória do Mundo


Gostaria então de concluir o meu anterior artigo sobre a possibilidade de reconciliação de surtos de mal extremo no mundo com a existência de um criador universal inteligente ou moral.

Em primeiro lugar importa esclarecer uma coisa: a questão de Deus é uma questão filosófica e não estritamente religiosa. Quando alguém vai falar em Deus as pessoas pensam logo que estamos a falar de religião. As religiões organizadas servem uma função social e preenchem uma necessidade humana, mas não é disso que me estou aqui a ocupar, independentemente dos méritos, erros, defeitos e virtudes dessas religiões. Do que eu estou aqui a falar é uma questão de uma pessoa se centrar ou orientar no universo. É uma questão eminentemente prática do ponto de vista psicológico. As pessoas gostam de saber onde estão, em que situação estão. Sabemos que vivemos num planeta que pertence a um sistema solar que pertence à via láctea que pertence à constelação tal e por aí fora até que… pertence a um universo. Existe a possibilidade de haver outros universos ou ter havido ou virem a haver. Mas a questão é se há uma realidade última – um conceito universal que abarque tudo o que conhecemos – um criador do nosso universo ou de universos, caso existam mais. A resposta tradicional a esta questão, do estatuto ontológico do Homem e da existência de uma realidade última, a que tradicionalmente chamamos Deus (os hindus chamam Brahman), é que é “um mistério”, ou seja, não há resposta. Contudo, ao longo da história todos os grandes filósofos, sem exceção, procuraram sempre obter respostas para esta questão e todos tinham em comum o facto de quererem conciliar o mundo com a propósito da vida humana – a felicidade ou o bem.

A teoria atual que quer dispensar o mundo de um criador desse mundo ou livrar-nos a todos desse criador

A vida evoluiu por seleção natural dos mais aptos, que, por serem aqueles que melhor se adaptam ao ambiente envolvente são aqueles que sobrevivem e se reproduzem em maior número. Só existe é esse pequeno problema de como mesmo os mais aptos evoluem para espécies diferentes - como é que explicamos as mutações nas células e no ADN que vão dando origem a novas espécies. Chamamos-lhes “mutações aleatórias”. O ADN, ao reproduzir-se, cria pequenas variações do seu código original e umas dão para melhor e outras para pior, sendo que as que são benéficas em relação ao ambiente envolvente aumentam automaticamente a capacidade de sobrevivência dos seres vivos que desenvolvem estas mutações. Se as mutações forem favoráveis, os seres que as herdam tornam-se mais aptos, mais fortes, mais espertos e, assim, tendem a sobreviver e reproduzir mais. Estas espécies tornam-se dominantes e continuam a evoluir para novas espécies quando acontece de novo uma mutação favorável.

Eu quero concordar com esta descrição da evolução da vida na Terra. Mas algumas questões assolam a minha aceitação. Então se há mutações favoráveis e desfavoráveis, como é que existe uma linha clara de evolução? Se as mutações são realmente aleatórias então não é possível haver uma regressão de uma espécie que estava mais evoluída? Não podia haver uma regressão das espécies simultaneamente com uma evolução, sendo que em termos líquidos, não haveria nem evolução nem regressão, estaria tudo mais ou menos na mesma? Porque é que a força evolutiva é mais forte do que a força regressiva? Mas calma, há uma resposta convincente para isso - porque as mutações favoráveis geram seres que se reproduzem mais, ao passo que as mutações desfavoráveis criam seres que tendem a morrer e a procriar menos. Assim, os seres que sofrem ou herdam mutações desfavoráveis tendem a desaparecer, ao passo que que os que herdam mutações favoráveis tendem a reproduzir essas mutações favoráveis. A força evolutiva é assim mais poderosa do que a força regressiva.

Ok, parece razoável. A partir do aparecimento das células, o mecanismo da seleção natural parece cuidar bem, por si, da evolução para seres com mais capacidade de ação e inteligência. Mas como é que surge a autoconsciência - a consciência de que se é consciente? Parece haver aí um salto de grau, uma descontinuidade que não pode ser tomada em conta apenas por uma mutação genética. Se fosse esse o caso nós poderíamos identificar quais os genes responsáveis pela autoconsciência, não?

Portanto, a seleção natural não parece explicar o aparecimento de autoconsciência. Mas isso era essencial para validar a teoria, não? Se é a teoria mais consensual, como é que pode não explicar o facto mais relevante da vida, após o aparecimento da própria vida, que é um ser ser consciente de que é consciente? Isso é como ter uma teoria consensual, universalmente aceite, que explica como é que as aves voam, mas não consegue explicar como voam os aviões. A teoria deve explicar os dois fenómenos, não?

Ok. Portanto, o que temos é uma teoria que diz, fazendo uma analogia, que a luz do dia é causada pelo Sol mas não explica como é que o Sol produz a luz; assim como o ADN é a causa disto e daquilo mas a teoria não explica como aparece o ADN; ou diz que a autoconsciência é causada pelo cérebro mas não explica como o cérebro produz essa autoconsciência.

A teoria da seleção natural tem um caráter mais descritivo do que ultimamente explicativo

O mecanismo da seleção natural não é uma teoria explicativa no sentido de que não explica, por si, o mecanismo de reprodução das células, etc., o mecanismo interior. É apenas uma descrição exterior que serve como suposto argumento metafísico para a suposta não existência de Deus. O problema é que esta teoria não é uma teoria específica, concreta que explica a evolução das espécies e da vida. Isto porque o mecanismo de seleção natural está praticamente em tudo o que observamos à nossa volta e não é por isso que é a causa da existência dessas coisas que observamos. O problema desta teoria é que com a expressão “mutações aleatórias” explica tudo e não explica nada. Um exemplo: 

As sucessivas versões e mutações de um Renault Megane evoluem no mercado exatamente também por sobrevivência, seleção natural, reprodução e mutações. Mas estas mutações no carro não têm nada de aleatório, são conscientes. Claro que se um hipotético extraterrestre daqui a uns milhões de anos começasse a desenterrar fósseis de Renaults Megane e não conhecesse a raça humana nem para que é que servem os automóveis, iria dizer que eles sofreram mutações “aleatórias” ao longo do tempo. E assim como alguns modelos de automóvel não sobrevivem no mercado, não têm sucesso, também algumas coisas que Deus cria direta ou indiretamente não resultam sempre naquilo que para o ser humano é entendido como perfeição. Mas, no automóvel, as “mutações aleatóriasresultam de uma decisão consciente de melhorar o modelo, de inovar, de ir ao encontro dos novos gostos, da procura, etc. As espécies-modelos do carro que se adaptam melhor ao mercado são assim reproduzidas através da fabricação de muitos carros individuais dessa espécie-modelo. Isto é, temos aqui a sobrevivência dos mais aptos em ação. Aliás, a própria economia de mercado, através do mecanismo da concorrência - que tende sempre para reduzir os lucros, é um propulsor da inovação (isto é, “mutações”) no sentido de incentivar a criação de produtos diferenciados que ofereçam uma vantagem competitiva nas vendas e promova os lucros da empresa.

Se começarmos a pensar nisso, a emergência de sistemas organizados espontâneos, que obedecem à descrição da evolução darwiniana, existe em tudo, não apenas na evolução da vida orgânica. Mas a descrição darwinista é uma consequência de haver vida ou matéria inteligente e não uma causa do aparecimento de vida ou matéria inteligente. É extremamente difícil aceitar que vida complexa e cheia de inteligência e significado apareça apenas através da combinação aleatória de matéria que não tem já, em potência, essa inteligência. É possível que um código ADN surja espontaneamente através de choques, combinações aleatórias de matéria (já nem pergunto de onde vem em matéria, em primeiro lugar)? Repare-se que o código de uma célula, assim como um programa de computador ou o projeto de uma casa, um carro ou uma ponte, não é meramente a combinação de certa matéria básica. Não. Como numa casa, existe toda uma hierarquia onde primeiro têm que ser construídas as fundações, depois o primeiro andar, depois as paredes, etc. Tudo na construção de um sistema-casa tem uma ordem e hierarquia – uma casa ou um carro nunca podem surgir da combinação aleatória de chapa ou de cimento, nem que estivéssemos 999 mil triliões de anos a ver a chapa e o cimento a formarem combinações aleatórias.

Uma galinha, se lhe derem tempo suficiente, acaba por escrever “Os Lusíadas”?

Do mesmo modo, a teoria evolutiva da linha dura afirma, por analogia, que se dermos uma máquina de escrever ou teclado a uma galinha, esta começa a bicar as teclas e a passar os “textos” que daí resultam aos seus descendentes que, através de mutações aleatórias no texto que lhes foi passado pela mãe-galinha, acabam por escrever os “Lusíadas”, a obra completa de Shakespeare ou as partituras das sinfonias de Beethoven. Isto é evidentemente um disparate, já que por mais tempo que gerações infindáveis de galinhas deem bicadas num teclado, nada mais vai sair do que “texto” sem qualquer consequência ou significado. A única forma de obter, em tempo indeterminado, os “Lusíadas” de uma forma aleatória, é através da programação de um computador que consiga fazer, exaustivamente, todas as combinações possíveis das letras do alfabeto e outros símbolos ortográficos. Isto tem que ser programado por um ser inteligente. Caso contrário, só saem, eternamente, coisas sem significado e, no máximo, aqui ou ali, uma palavra com significado. A galinha pode estar 1 dia, 1 mês, 1 ano, 1 milhão de anos a bicar no teclado e a passar os textos para os seus pintainhos que nunca vai sair uma sequência de letras que corresponda aos Lusíadas ou a uma estória do Harry Potter.

Só uma mudança ontológica na galinha para um ser racional torna possível a escrita de algo racional. Contudo, a teoria evolucionista da linha dura diz que as partículas elementares, se deixadas à solta (já nem pergunto de onde vieram as partículas elementares), produzem não apenas sistemas organizados, embora mais simples, como o átomo ou a molécula, como também a célula, que é um sistema supercomplexo, comparável a uma fábrica de tecnologia de ponta - com uma complexidade, portanto, idêntica ou superior à das nossas criações mais sofisticadas. Se as partículas elementares sozinhas constroem uma célula, uma galinha então, se lhe derem tempo suficiente, também escreve “Os Maias” do Eça de Queiroz. [*]

Mas o que é uma explicação satisfatória?

Mas, mesmo assim, vamos supor que a teoria, um dia, vai conseguir “explicar” tudo, desde o aparecimento das células e do ADN até ao aparecimento da autoconsciência, no sentido de oferecer uma descrição satisfatoriamente completa e plausível de que A causa B, B causa C, C causa D e por aí fora. Em traços gerais: sistemas físico-químicos (átomos, moléculas) -> células -> órgãos -> consciência (animais) -> autoconsciência. Vamos supor que estamos satisfeitos com o mecanismo de causalidade; que estamos convencidos que assim é, tal como quando vemos uma pedra a bater num vidro e o vidro parte dizemos com toda a convicção que a causa da quebra do vidro foi a pedra que nele bateu. Será que, nessa situação, as perguntas acabaram, tudo está explicado? Não. Porque não existe ainda resposta para duas questões primordiais e que são as questões, quando se está a discutir a suposta existência de Deus. E estas questões são:

1. O que é que causa a primeira causa na cadeia de causalidade, A?

2. Porque é que a causa n causa n+1 desta maneira e não doutra?

Isto é, falta responder de onde, ou como, apareceu a própria matéria do mundo e da vida e, adicionalmente, falta responder porque é que X causa Y e não Z. Ou seja, a teoria só é satisfatória enquanto teoria filosófica e não meramente descritiva, se nos disser porque é que Y tem de seguir necessariamente de X e não apenas dizer, a posteriori, que se observa claramente que Y segue de X. Façamos uma analogia com a descrição do funcionamento de um automóvel. Todas as peças na mecânica do automóvel têm uma explicação. Se carregarmos com o pé no acelerador, verificamos que o carro começa a andar mais depressa. Daqui temos já uma teoria “explicativa” da relação de causalidade entre o acelerador e a velocidade do carro. Mas isto ainda não explica o mecanismo de causalidade. Porque é que ao carregarmos no acelerador o carro anda mais depressa? O próximo passo é descobrir que isso resulta numa entrada maior de combustível para o motor. Desta forma podemos ir percebendo todas as relações de causalidade entre as peças do carro até que possamos descrever todo seu sistema mecânico. Chegados a este ponto pergunto, está tudo explicado, não falta nada? Falta ainda responder 1) qual foi a primeira causa do aparecimento do carro e 2) porque é que X causa necessariamente Y.

A reposta a 1 é a ideia, o conceito do carro – um veículo que se mova sem ser puxado por animais. Desta explicação resulta que todas as relações de causalidade existem para servir este propósito. O carro necessita de um motor, o motor necessita de um combustível, o combustível necessita de um depósito e, para pôr o carro a andar mais depressa, existe um mecanismo de regulação da entrada desse combustível para o motor, que é dado pelo pedal de aceleração. Assim, a ideia do carro dá-nos a necessidade inerente a todas as relações de causalidade entre as peças. Isto é, só a ideia, o propósito, o conceito ou significado do carro é que realmente explica as relações, a necessidade das relações de causalidade entre as peças do carro. Caso contrário, temos apenas uma descrição de um mecanismo de causalidade que não nos responde à questão “mas porque é que é assim e não assado?”.  (Claro que além da parte mecânica, depois pode escolher-se a cor, os estofos, os extras, etc., de uma maneira mais ou menos arbitrária – é a parte puramente decorativa e não estritamente funcional do carro, assim como também podemos supor que o universo e a vida têm partes meramente decorativas e não estritamente necessárias)

Estas questões só acabam quando percebermos o propósito ou significado do automóvel. Do mesmo modo, mesmo que a ciência explique todas as relações de causalidade no mundo nunca explica porque é que X causa Y e não Z, se não houver um propósito ou um significado dado por um sistema mais amplo onde estão inseridos e do qual fazem parte essas relações de causalidade. Enquanto não se chegar a esse ponto, as questões nunca param. Novas respostas apenas geram novas questões. Neste sentido, a economia, enquanto ciência humana, é diferente das ciências naturais, já que lida com seres eminentemente teleológicos, os seres humanos, que agem sempre com um propósito. Um ser humano realiza uma ação como meio para atingir um fim. Daqui, derivam-se todas as proposições sobre o comportamento económico do indivíduo e, deste último e da interação de todos os indivíduos, deriva-se o funcionamento agregado da economia e a emergência de uma ordem racional à qual damos o nome de sistema de mercado. As ciências naturais, enquanto supuserem que o que estudam não pertence a um sistema mais amplo, o significado do qual é que dita a necessidade e é a verdadeira explicação das leis que essas ciências pretendem obter, apenas apresenta descrições e não verdadeiras explicações.

Mas qual é então a verdadeira explicação do mundo?

Repare-se que o mecanismo de seleção natural, enquanto meramente descritivo, pode ser visto como descrevendo um processo de refinamento dos seres, dos mais abstratos (átomos e moléculas) até aos mais concretos (células), até aos mais capazes (animais e finalmente seres humanos). Basta concebermos a primeira causa, conforme resulta da prova cosmológica da existência de Deus, como sendo incondicionada, isto é, não restrita por nada exterior a ela. Neste caso, ela é pura existência, puro poder criativo e vai criar tudo o que é possível criar, (desde que não seja contraditório, como cavalos, iguais aos que conhecemos, mas alados). Esta primeira causa vai ser então um processo de desenvolvimento do potencial para o atual, quer em termos qualitativos (infinita diversidade de espécies) quer em termos quantitativos (infinita quantidade de seres de uma espécie). Existe então uma continuidade das espécies ao longo do tempo e do espaço em cada momento do tempo. Mas como os indivíduos são limitados e existem num espaço e tempo limitados, existe escassez e luta por recursos, o que limita a quantidade desses indivíduos, sendo que os mais capazes são aqueles que sobrevivem e se reproduzem transmitindo assim as características genéticas e outras aos seus descendentes. O mecanismo de seleção natural descreve, assim, a emergência, com continuidade entre as espécies, de um ser mais perfeito a partir do aparecimento de seres relativamente primitivos, pouco desenvolvidos.

Esta existência de uma causa primeira cuja atividade intrínseca é o desenvolvimento de todo o seu potencial de criação, dá-nos assim a necessidade causada por um sistema cujo objetivo, propósito, pode ser visto figurativamente como o aparecimento de seres cada vez mais perfeitos, juntamente com a diversidade espacial e temporal que decorre da necessidade interna de pura criatividade da primeira causa. Deste modo, todas as relações no nosso planeta, e até no universo, têm este ponto de referência como a verdadeira causa explicativa das leis da natureza, e não apenas uma descrição de causas e efeitos que se sucedem sem aparente necessidade interna. Deste modo podemos explicar a emergência de certas formas de vida e da própria autoconsciência.

Claro que podem dizer que explicar a existência do mundo através da existência de uma primeira causa que é incausada é apenas puxar a questão mais um passo atrás e não realmente resolvê-la, pois, pergunta-se, de onde vem então a causa incausada? A resposta é que, por ser incausada, não veio de lado nenhum. Como dizia Tomás de Aquino, a sua essência é existir, é pura existência. Agora, a questão é se a existência de uma causa incausada, que é mental, é mais ou menos satisfatória para a nossa inteligência do que a existência de matéria que surgiu do nada, ou que sempre existiu (mas se sempre existiu como é que apareceu?). Para mim, a primeira explicação é totalmente satisfatória, ao contrário da segunda, que não vejo por onde se lhe possa pegar. Posso perfeitamente conceber a existência de uma mente original não causada por nada exterior a ela, que é pura existência. Ao contrário, não consigo conceber a existência de matéria que não foi criada por nada exterior a ela e que ainda por cima, enquanto estrita matéria, criou aleatoriamente todo o mundo que conhecemos.

A força da vida é assim a pulsão criativa que cria tudo o que é possível criar, mas em que os seres evoluem do mais abstrato, indeterminado, para seres mais concretos e definidos, com mais autonomia e poder de ação, retendo, contudo, as características básicas dos seres anteriores, naquilo a que Hegel chamava de um processo de sublação.  Isto é, inicialmente o universo é formado apenas por partículas elementares que se agrupam num primeiro sistema organizado ou conceito – o átomo. Os átomos depois agrupam-se e organizam-se através de outro conceito – a molécula. Depois das moléculas aparecem as células e as primeiras formas de vida, os organismos unicelulares. A partir daqui dá-se o desenvolvimento para organismos multicelulares compostos por células, tecidos celulares e órgãos. Temos o aparecimento, por um lado, dos seres orgânicos vegetais e, por outro lado, dos organismos animais. Estes animais, posteriormente, evoluem em vários sentidos, mas destaca-se a evolução de algumas espécies no sentido de um desenvolvimento da consciência, da capacidade de processar e interagir com o ambiente em que estão inseridos. Posteriormente aparece o ser humano, que além de ser consciente, tem também a faculdade de ser consciente de que é consciente, reflete sobre si e o mundo, começa a julgar-se a si e ao próprio mundo em que está inserido, fazendo juízos sobre se é bom ou  mau, correto ou errado, verdadeiro ou falso, belo ou feio, justo ou injusto, etc. Isto é, o ser humano surge como o ser com a capacidade de refletir e ajuizar sobre o seu próprio conceito de ser humano e sobre o próprio conceito da vida e do mundo em geral.

Existe assim uma evolução necessária e contínua dos seres em direção a um ser com mais capacidade de pensamento, ação e destreza física. Podemos pensar este ser como, figurativamente, atraindo a força da vida na direção do seu aparecimento. Mas tal imagem não é estritamente necessária. Basta o impulso vital da primeira causa incausada ser um impulso criativo em que novos seres com mais poder de ação emergem a partir de seres mais abstratos e indiferenciados, como a contínua atualização de um potencial que já existe desde o início. 

 Ao mesmo tempo, parece que a lógica da criação é realizada necessariamente em termos de conceitos e não de indivíduos. Estes últimos são apenas a infinita variedade de individuações que partilham a essência do conceito. As árvores são necessárias, mas uma espécie de árvore ou outra não é necessária, a não ser apenas como expressão do poder criativo de tudo criar da Causa incausada. Mas como o conceito da árvore já está na sua semente e não se desenvolve espontaneamente por evolução aleatória, e o conceito do homem adulto já está no embrião e no bebé - também a inteligência, a criação por conceitos e não apenas por formas individuais sem qualquer relação inicial umas com as outras, já tem que estar no início da criação do universo. É a única forma de racionalizar a emergência de vida inteligente a partir de matéria não inteligente que, só por si, nunca pode criar vida inteligente. A evolução das formas de vida não é mais do que o desenvolvimento da vida que já está latente na semente ou no embrião, mas que é apenas manifestada na idade adulta. É esta também a razão porque percebemos os fenómenos do universo como estando sujeitos às leis da física e não o oposto, quer dizer, entendemos que primeiro, hierarquicamente, existem as leis do universo e que depois os objetos e fenómenos do universo é que se encaixam nestas leis. Ora, o que é isto senão afirmar que o mundo é criado essencialmente por conceitos (as leis universais) e não por objetos individuais sem qualquer relação a priori entre si? Tal como o que está primeiro, o que move a construção de uma casa ou carro é o conceito, o projeto dessa casa ou desse carro, e não é a sobreposição de materiais de uma forma mais ou menos aleatória que dá origem a uma casa ou um carro.

 Só conseguimos conceber, portanto, a emergência de sistemas complexos como os organismos, já para não falar dos átomos e moléculas, se existir uma inteligência superveniente que organize a matéria e lhe dê uma direção, um propósito, nem que seja apenas o propósito de continuar a existir como sistema integrado e que eventualmente seja capaz de se reproduzir. É necessária pelo menos alguma inteligência inicial introduzida na matéria. Até quem não gosta da ideia de um Deus criador tradicional, como Thomas Nagel, por exemplo, reconhece isto.

A força da vida, a causa da criação, não é, assim, apenas uma máquina geradora de matéria de uma forma aleatória, mas é possuída de uma infinita inteligência que vai criando através do desenvolvimento gradual de conceitos que se apoiam e nascem a partir dos conceitos anteriores. Assim, o ser humano, o ser autoconsciente, é uma sublação sucessiva dos conceitos de átomos, moléculas, células, organismos, animais. Por sua vez, cada um destes conceitos é materializado na forma de uma infinidade de indivíduos agrupados numa infinidade de espécies. Esta imensidão de indivíduos dentro de um mesmo conceito-espécie, desde indivíduos mais evoluídos a menos evoluídos, permite que a passagem de um conceito para um outro conceito superior seja vista como seguindo uma linha praticamente contínua.

É essa inteligência primordial da força da vida que se revela num ser finito, o ser humano, enquanto atualização de um potencial que já existe desde o início; e não é o surgimento de um ser inteligente que resulta da combinação aleatória de matéria que nunca teve essa inteligência. A força da vida é assim a mente que cria e organiza a matéria e não apenas uma força cega que põe a matéria a mexer-se de um lado para o outro e de onde vai resultar a emergência de seres e de estruturas orgânicas altamentes complexas e inteligentes.

Assim, o aparecimento da autoconsciência, a consciência de ser consciente, aparece como uma inevitabilidade, uma consequência necessária do desenvolvimento dos seres do potencial para o atual. Na escala da evolução gradual de aparecimento de seres cada vez mais perfeitos não é lógico, inevitável, que surja um ser que tenha consciência da sua própria consciência? E não é este ser a própria força da vida que, materializada num ser específico, toma consciência de si enquanto sendo a própria força da vida? E não é este ser já algo perto de um ser muito evoluído – a força da vida que olha para si mesma e percebe que é a própria força da vida materializada num ser material específico?

Do mesmo modo podemos responder à questão de porque é que o universo é tão grande?

Muitas pessoas olham para a infinidade do Universo e perguntam-se que sentido faz um espaço tão grande sem formas de vida sencientes que deem um significado a toda aquela matéria que anda para ali perdida. A conclusão que tiram é que dado que todo o universo que conhecemos não tem vida, exceto o nosso sistema solar, e mesmo assim num só planeta, é que o universo é apenas uma coleção aleatória de matéria que, por mero acaso, deu origem a um pontinho de onde surgiu vida consciente.

Repare-se, contudo, que há uns séculos ou milénios atrás, a Terra parecia virtualmente infinita. Hoje é vista como um mero grão de areia na vastidão do universo. É pequena. E é pequena porque o ser humano é tão grande. Não em tamanho físico, mas em mental. A capacidade mental do ser humano é virtualmente ilimitada e assim como rapidamente chegou aos confins da Terra há de chegar também mais cedo ou mais tarde aos confins do universo. Daqui a uns séculos ou milénios o universo, cá para mim, vai ser é pequeno e não grande. E talvez aí até se descubra que podem haver outros universos em simultâneo a este ou universos passados e eventualmente futuros.

Assim muito rapidamente, o que é o mundo?

O mundo não pode ser concebido sem indivíduos. Aliás, é a isso que chamamos mundo. O mundo é individuação. Esta individuação é, ao mesmo tempo, limitação e escassez. Esta escassez gera necessidade; esta necessidade gera vontade; e a vontade gera ação para realizar a vontade que decorre da necessidade resultante da escassez. O mal resulta do choque de liberdade de ação entre os vários seres individuais. Este choque é inevitável dada a escassez de recursos, conhecimento, beleza, afetos e satisfação do ego pelos quais os seres finitos, limitados, anseiam ou competem. Esta escassez é, contudo, necessária para existir vontade de agir e daí surgir a própria ação, que é o que faz mover o mundo. Assim, esta necessidade de cada ser sobreviver e se afirmar nos seus pensamentos, vontades e ações vai entrar inevitavelmente em conflito com os pensamentos, vontades e ações de outros indivíduos. Isto é um resultado inevitável de Deus se manifestar no mundo, ou melhor, de o mundo ser a individuação, desdobramento de uma única força vital primordial.  E, neste aspeto, o mundo há de necessariamente ter sempre algum mal contido nele, na medida em que não conseguimos satisfazer todas as nossas necessidades ou somos impedidos de o fazer pela concorrência de outros seres pelos mesmo fins. Aquilo que consideramos mal moral objetivo, isto é, aquilo que quase todos concordamos que é um mal, surge quando um ou mais indivíduos levam a sua liberdade de ação longe demais, passando completamente por cima da liberdade dos outros indivíduos, ignorando completamente a sua autonomia – é isto que choca nos casos de mal extremo – a total falta de empatia e desconsideração com as pessoas a quem se faz mal. Isto acontece em casos localizados como assassinatos mais ou menos gratuitos ou, em maior escala, em guerras em que se mata “o inimigo” simplesmente por ser uma pessoa que está do outro lado da barricada. Quanto maior é a falta de empatia e a desconsideração pelos outros mais a ação é considerada um mal óbvio, que vai para lá daquele mal necessário que resulta da simples competição por recursos escassos.

Evil shall not prevail

Contudo, a força do bem prevalece. Isto é, ao longo da história as pessoas têm sido sempre capazes de, no fim da refrega, reconhecerem o que está certo e o que está mal. Hoje em dia, a esmagadora maioria das pessoas reconhece que as guerras são cada vez mais inaceitáveis, por exemplo. Esta distinção entre o que é o bem e o mal, que é dada com mais clareza nas instâncias de mal extremo, surge precisamente do reconhecimento implícito que somos todos a mesma forma da vida, a mesma energia e mente original. É esta mesma força que une toda a humanidade no sentido de reconhecer que o bem é o que promove o sentimento de unidade e identidade universal e o mal é o que promove o sentimento de separação entre as pessoas.

Deus é, por isso, essa mente e energia primordial que une toda a vida numa só. E o pressentimento dessa união inerradicável leva-nos a julgar como mal as forças que promovem a desintegração dessa unidade. Mas o mundo é isso, é individuação, é a manifestação da força original em todas as suas variedades possíveis, em todo o seu poder criativo ilimitado. E daí vai sempre resultar choque entre os indivíduos que representam as inúmeras manifestações dessa força. Mas como os indivíduos, ao mesmo tempo, pressentem que fazem parte de algo maior do que eles e que os une a todos, a força do bem, da união, do respeito pelos outros, existirá sempre. Deus não é, pois, bom ou mau, moral ou amoral, mas Deus é a bondade em si, pois ele é essa própria união (bond) original que nos abraça a todos num único Ser. Por isso, o mal manifesta-se enquanto houver seres individuais, mas não prevalece na medida em que nos reconhecemos parte de um todo que nos torna um só.

O Mal

O mal natural é o choque entre a liberdade, capacidade de ação, da natureza e a liberdade dos seres humanos. A evolução humana permite mitigar cada vez mais estes males na medida em que o ser humana tem a capacidade de conhecer o mundo e mudá-lo, através da ciência e da tecnologia. Hoje somos capazes de mitigar os efeitos de terramotos, incêndios, cheias e doenças; de prever e, em princípio, eliminar a colisão de um meteoro com a Terra. Isto é, a partir do momento em que a força da vida assumiu a forma de um ser que tem a consciência de ser a manifestação dessa própria força, adquiriu também a capacidade de ajuizar e mudar a seu favor os conceitos anteriores criados pela força da vida sem terem em atenção a emergência do homem – esses conceitos mantêm-se presentes mas o homem tem a capacidade de os virar a seu favor ou de mitigá-los caso sejam perniciosos para ele.  

O mal moral é aquele que é feito pelos humanos uns aos outros. Parte da perceção de que algo é mau resulta apenas da nossa falta de informação do quadro geral em que decorre a ação. Quantas vezes, percebendo o motivo real da ação de uma pessoa, mudamos a nossa perceção de que a pessoa fez algo de errado, para o entendimento de que havia uma razão para o fazer, ou que essa pessoa, também ela, não se apercebeu ou não teve intenção de gerar certos resultados. Depois existe o mal percebido como resultando apenas da nossa falta de compreensão do funcionamento do sistema em que uma ação é percebida como má. Quantas vezes as pessoas dizem que uma coisa é má apenas porque não percebem o seu significado, necessidade e até bondade dentro do sistema em que está inserida, nem sequer percebem que para outras pessoas, até para os supostos sofredores desse mal, não existe maldade nenhuma aí.

Existe outro tipo de mal, que é feito propositadamente, mas não é “muito mau” - as pequenas vinganças e crueldades, a afirmação e sobreposição do orgulho e da vaidade própria, a inveja, os ressentimentos. Aqui é o ego a falar mais alto, a afirmar-se perante o que o rodeia, a deixar-se afetar e a ir na onda. É uma sucessão de ações e reações que só pára quando a pessoa se recolhe em si mesma, reflete e vê que está a ser estúpida como o caraças. Ou então não consegue perceber que está a ser estúpida e continua a fazer mal aos outros e a si mesma. É aquele mal que faz parte do sal da vida, que as pessoas gostam de ver em filmes e romances, porque dá ação e cria tensão. Tensão essa que em geral é resolvida no fim. Em termos mais filosóficos e contemplativos, diria que é aquele mal que faz parte de uma certa estética da vida enquanto ação, que torna possível as estórias com vilões e bandidos. Esse mal traz a recompensa existencial de poder ser vencido e, portanto, ser transformado em bem, em vitórias, perante os outros ou nós mesmos.

A evolução do Homo Sapiens

Depois há o mal mais incompreensível, o mal moral extremo, aquele com que até um verdadeiro filho da p*** fica chocado, porque até para ele transcende os limites do aceitável. Este mal é relativamente marginal, isto é, ocorre muito pontualmente em relação àquilo que é a normalidade do dia a dia – apesar de todos os dias as notícias dos jornais procurarem afincadamente por ele para captar a atenção dos espectadores. O pior ainda é o mal extremo praticado em massa como no caso dos genocídios nazis e comunistas no século passado. Isto pode ser explicado, contudo, como uma fase de transição do homo sapiens para o que podemos chamar de homo spiritus. Aceitando as atuais datações mais consensuais da idade da terra e do universo, o homo sapiens, que surge mais ou menos há 3 ou 4 segundos em termos de um dia da história da terra e um ou dois segundos em termos de um dia da história do nosso universo, ainda é uma espécie de animal, mas agora em fase de desenvolvimento da autoconsciência e do sentido do bem e do mal. Os animais não têm este sentido. Para eles o bem e o mal apenas podem ser o que os torna alegre ou tristes – não têm a ideia do bem em abstrato - a lei moral. Da mesma forma, algumas pessoas ainda não desenvolveram este conceito mais abstrato do bem, não desenvolveram dentro de si o instinto da lei moral. Esta compreensão de que a lei moral tem um caminho de desenvolvimento a realizar dentro do homem ao longo da história, permite-nos perceber porque ainda existem surtos desse tipo de mal e talvez sempre existam, como é também de esperar que sempre existam terramotos ou pessoas mortas por animais ferozes. Contudo, a progressiva internalização da lei moral por parte dos seres humanos dá-nos a esperança que o mal moral repugnante seja algo que diminua progressivamente de escala em relação ao que acontecia no passado, como do mesmo modo, a evolução tecnológica nos permite também diminuir o impacto do mal natural. A erradicação, contudo, total do mal, tanto moral, como natural, não é previsível pois isso, em último grau, eliminaria os conceitos de bem, de felicidade e de valor da vida, já que eliminaria também a morte – o suposto único mal irremediável.

Razões para achar que o mundo agora está mais habitável

Atualmente existem no nosso planeta quase oito biliões de variedades do conceito do ser humano, oito biliões de personagens. Mas este conceito do ser humano é já um ser moral. Contudo, assim como os automóveis hoje são muito melhores do que há 100 anos atrás mas ainda têm muito espaço para evoluir, também o completo ser moral só vai aparecendo no desenrolar da evolução das individuações desse conceito desde as formas mais rudimentares até às mais perfeitas. O desenvolvimento moral do homem, pelo menos no que se reflete nas normas de conduta sociais e nas leis dos estados, parece-me ser algo de factual. Práticas imemoriais como a descriminação de outras pessoas pela cor da pele, das mulheres, violência com crianças, a escravatura, a tortura, a pena de morte mesmo sem provas irrefutáveis, a crueldade com os animais, a ausência de direitos humanos fundamentais, a aceitação da guerra como algo de natural e não brutal, são atualmente e apenas recentemente na história, consideradas socialmente inaceitáveis pela grande maioria das pessoas. Isto é uma evidência, do meu ponto de vista, de que o ser humano está de facto a crescer do estado da semi-animalidade para um estado mais espiritual.

Sobre a realidade última ou o que parece ser o real realmente real

Esta parece ser a verdadeira realidade última de tudo - um mundo em que a intenção última de tudo é a sentiência, em que nesta se pode incluir o pensamento. Isto é que é o verdadeiro real, o “real real”. A matéria é apenas a expressão da individuação do mundo, as partes do sistema, a expressão visível, a comunicação e partilha dessa sentiência original de uns indivíduos para os outros. É a tinta do quadro, mas de um quadro que já está na mente do pintor. O quadro material é a forma de o pintor comunicar, partilhar, a sua ideia com as outras pessoas. O real não é a tinta e a tela (a matéria), mas a ideia do quadro. Ver o mundo como resultando de uma ideia, a ideia do desenvolvimento progressivo de um potencial criativo infinito a partir de uma força mental e sentiente, não elimina, contudo, obviamente os erros científicos. E tal como pensar que os sobreiros foram feitos para produzir rolhas, os erros de uma interpretação demasiado antropomórfica sobre o grau de engenharia da força da vida devem ser evitados. Devemos ter em mente que a força da vida cria por conceitos e, a partir destes, gera uma diversidade infinita de indivíduos e não ao contrário.

Penso que o ceticismo de David Hume e os avisos contra o dogmatismo de Immanuel Kant podem ser apreciados neste sentido – de constituírem um aviso para os erros cometidos por uma interpretação demasiadamente antropomórfica, à la carte, do mundo. Mas não há necessidade de atirar fora o bebé juntamente com a água do banho, e negar que a realidade que percebemos é fundamentalmente diferente da realidade real, que tudo o que vemos no mundo é uma imposição, projeção da nossa estrutura mental e conceptual. Não, temos todas as razões para achar que o mundo e a nossa ideia dele são idênticos, apesar dos erros de interpretação que fazemos, assim como uma pessoa que sabe escrever dá ocasionalmente erros ortográficos ou gramaticais. Não é por inserirmos uma régua na água e ela aparecer torta que vamos dizer que tudo no mundo nos aparece igualmente com esta forma de régua torta. Não, há coisas no mundo que são deformadas pelos nossos sentidos, mas que temos a capacidade de corrigir, reconhecer o erro e conhecer realmente. Se formos até às últimas causas do mundo vemos que estas são a sentiência e a necessidade de criar, através da inteligência conceptual, tudo o que é possível criar. Tudo o resto são detalhes derivados destas duas coisas.

Descartes, por exemplo, a quem é atribuída o problema de tentar conciliar a existência separada e supostamente ontologicamente igual da matéria e do pensamento, dá todas as indicações de supor que a mente é anterior ao corpo, que é a mente que dirige o corpo e não que ambos são "paralelos": « A mente, ao contrário do corpo, não é composta por acidentes [atributos vários] mas é uma substância pura». Isto claramente indica que a mente é algo de original, pois não é formada por mais nada a não ser ela mesma, ao passo que o corpo é uma composição de outros elementos já existentes. Por outro lado, Descartes afirma que pode imaginar perfeitamente a mente sem um corpo e, nesse sentido a mente, ou a alma, é imortal. «A minha essência consiste inteiramente em eu ser uma coisa pensante [...] Tenho uma ideia distinta de um corpo na medida em que é apenas uma coisa com extensão, por isso é certo que eu sou realmente distinto do meu corpo e posso existir sem ele». Parece-me claro que, daqui, o suposto dualismo cartesiano de que mente e corpo são duas entidades primitivas que se fundem num determinado ser não tem fundamento. O corpo é claramente um objeto tomado pela alma para viver neste mundo e não algo com o mesmo estatuto que a alma: o corpo morre e a alma fica. Por isso Descartes é um idealista no sentido de considerar a mente  como o elemento primeiro da existência: «De facto, a ideia que eu tenho da mente humana é de longe mais distinta do que a ideia de qualquer coisa corpórea». [Extratos do livro “Meditações sobre a primeira filosofia”]

Sobre um Criador perfeito

Seria chocante pensar que Deus não age por necessidade e sim por vontade. É este Deus caprichoso, com vontades, que penso que os ateístas rejeitam veementemente como causa criadora e motriz do universo. Um Deus com vontade, que beneficia A e prejudica B, a quem se pode meter cunhas, fazer pedidos, solicitar favores, é atualmente impensável. Deus é o mundo, é a própria força da vida que está em tudo o que existe no mundo. Não é um senhor de barba branca que está fora do mundo e a quem se possa pedir para o nosso clube ganhar este ano o campeonato. Isto não quer dizer que a oração não tenha significado nem que não seja eficaz. Como dizia Jude Law no “Jovem Papa”, na oração não pedimos coisas a Deus, mas falamos com Deus, pedimos apenas para nos mostrar o caminho e a verdade, pedimos para sermos melhores.

Claro que podemos pedir pelo bem do mundo, do nosso e dos outros, pois só este facto de pedirmos já torna o mundo melhor e quanto mais pessoas orarem pelo bem do mundo, melhor o mundo está, pois tem mais pessoas conscientes do bem geral e não apenas do seu bem individual. Também é possível que a oração gere uma qualquer energia mental positiva que possa extravasar e produzir efeitos. É talvez possível, não sei. De qualquer forma, a oração e a meditação são formas de contacto consciente com a nossa realidade real, uma forma de sairmos do nosso ego enfiado neste corpo minúsculo e insignificante quando visto em isolamento do resto do mundo. Um Deus estritamente pessoal, como percebemos a pessoa humana, seria um Deus com vontades específicas, e necessariamente causa de desilusões e raivas, pois vão inevitavelmente acontecer-nos coisas más ou mesmo muito más, as quais diríamos que podiam ser evitadas por Deus se ele quisesse. Embora seja possível acreditar que a existência de cada pessoa tenha o seu sentido ou significado, é mais seguro e razoável acreditar que Deus cria por conceitos e que os indivíduos são apenas variações, modos desse conceito, sendo que existem infinitas variedades onde cada uma delas tem partes boas e más e essas partes más vão afetar inevitavelmente os outros. Mas essas partes más são o custo de haver continuidade na evolução, liberdade de ação e juízo e, em último grau, criadoras da tensão que parece ser necessária como motivo da ação, que é no fundo o mundo – ação.

Deus é assim a lei que é igual para todos e não o chefe que decide a favor ou contra este ou aquele, conforme as circunstâncias. Mas, ao mesmo tempo, Deus é amor na medida em que é a união e identidade primordial de tudo o que existe. E, nesse sentido, Deus é amor infinito, sem resquícios de individuação ou egoísmo.  Quem se sente com Deus ou em Deus, sente a fonte única da vida, a qual todos somos e partilhamos. Não meramente uma energia, mas uma força inteligente e sentiente. Ao ficarmos com Deus ficamos com essa cumplicidade e esse amor eterno, esse perdão e essa salvação.

Ao mesmo tempo, existindo apenas uma única força da vida, que se manifesta numa infinidade de seres, todos os seres finitos e mortais são ao mesmo tempo imortais, pois não são mais do que a própria força da vida, ela mesma – que sempre existiu e sempre existirá. Eu, por exemplo, não sou o Rui, mas sou a força da vida que se manifestou concretamente neste objeto humano a que deram o nome de Rui. Mas a minha realidade maior é a força da vida que habita em mim e não este corpo efémero em que ela habita, do mesmo modo que a realidade de cada bolha formada na água não é essa bolha específica mas a água da qual ela foi formada – as bolhas de água aparecem e desaparecem continuamente mas a realidade que permanece e da qual essas bolhas são apenas manifestações fugazes é a água em si.

A bondade de Deus e pela qual damos graças é também o facto de termos sido criados com capacidade de melhorar o mundo, de fazê-lo para nós, através da ciência e tecnologia, medicina, educação, leis. Somos a força da vida a viver para Si e não fora de Si, como dizia Hegel. A bondade de Deus é a união e realização de que todos somos Deus, somos a manifestação da força da vida, do seu pensamento e ação. Deus deu-nos mais motivos de sofrimento porque deu-nos mais sensibilidade e pensamento, mas também nos deu simultaneamente a capacidade de melhorar o mundo e mitigar esse sofrimento

Deus não é perfeito, no nosso conceito de perfeição, nem criou o melhor mundo possível pois não existe um mundo perfeito - uma expressão matemática ou quantitativa que possa ser otimizada. O mundo é um equilíbrio de diferentes conceitos, em que certas determinações implicam sempre as suas negações – mais liberdade implica menos previsibilidade, por exemplo. Há pessoas que gostam mais de liberdade, outras que gostam mais de estabilidade. Estes equilíbrios serão eternamente discutidos e o único a que podemos aspirar é um second best, pois um bem acarreta sempre um mal. Isto é a divina justiça que resulta de vivermos num mundo escasso em que toda a ação tem um custo de oportunidade, aquilo que deixamos de fazer ou ter de modo a fazermos ou termos outras coisas. Uma causa A em regra produz efeitos 1, 2, 3 bons e um efeito 4 mau. Se quisermos eliminar o efeito 4 temos que eliminar a causa A e assim perdemos os efeitos bons juntamente com o efeito mau. O custo de eliminar cirurgicamente o efeito 4 seria criar um mundo a partir não de conceitos mas progressivamente mais de regras à la carte, em que deixaria de existir um conjunto de leis gerais e previsíveis para haver uma descontinuidade nos fenómenos quer espacial quer temporal. O desejo sexual, por exemplo, (voltando ao acontecimento com que iniciei a discussão do mal no artigo anterior) é a causa também do desejo que certos adultos sentem por crianças, tal como existe normalmente nos animais - em que os pais copulam descontraidamente com os filhos. Nos seres humanos vemos que isto já é uma raridade, mas seria uma descontinuidade da evolução a partir dos animais se isto fosse eliminado completamente. Se virmos esta continuidade no mundo percebemos a presença ainda dos instintos animais no homem. Aliás, é o homem que torna os instintos animais (alguns) imorais – e não os instintos animais que fazem o homem ser imoral. Nos animais não existe moral. Existe apenas alegria ou tristeza e ação em função disso. O homem, ao tornar imorais certos instintos animais está a proibi-los, mas isto é uma coisa que não os elimina, apenas atenua e tende a desaparecer - mas apenas com o tempo, continuamente ao longo do tempo. Por isso penso que a criação deve ser vista como a evolução contínua até o ser mais perfeito e não como Deus criando logo o ser mais perfeito, mas deixando nele os vestígios de seres menos perfeitos. Estes vestígios existem, mas são resultado da evolução contínua e não de erros de fabrico ou descuido na criação do ser mais perfeito.

Em sistemas inerentemente sentientes e mentais, como é o caso do ser humano, a perfeição é indefinível ou inerradicavelmente subjetiva. O que é mais perfeito: uma loira ou uma morena? Olhos azuis, verdes ou castanhos? Um apartamento ou uma moradia? Um carro grande ou um carro pequeno? Um cão grande ou um carro pequeno? Vemos claramente que apenas o contraste, a diversidade e a oposição permitem o juízo estético ou dizer que isto ou aquilo é melhor ou pior. Sem estes contrastes teríamos apenas um grande marasmo indiferenciado. O ser mais perfeito apenas pode ser definido, como sempre o fizeram os escolásticos, Descartes e Espinosa, como o ser com mais realidade, com mais capacidade de ação. Nesse sentido o homem é sem dúvida o ser mais perfeito, mas apenas por ser o que contém “mais realidade”, mais poder de ação - mas que ainda tem espaço para evoluir.

Machina Mundi

A realidade última do mundo, isto é, tudo aquilo em que se pode subsumir os objetos e ações do mundo, parece ser o pensamento e a sentiência, como referido em cima. Assim como derivamos as leis da natureza e da sociedade a partir do comportamento da natureza e das pessoas, respetivamente, também destas leis podem ser derivadas as categorias (conceitos ou leis) metafísicas que governam toda a realidade física e mental. Aliás, na sua “Lógica”, foi algo como isso que Hegel tentou fazer. O mundo pode ser visto como a evolução necessária a partir de seres mais ou menos indeterminados até ao aparecimento de seres e sistemas altamente estruturados, complexos e inteligentes. Se começarmos apenas com um conjunto indeterminado de objetos materiais, as categorias mínimas pelas quais eles agem e interagem são algo como “movimento, repouso, impacto e velocidade”. Estamos então na presença de um sistema, para já, constituído por ações puramente aleatórias, ao que, em boa verdade, nem se pode chamar um sistema, mas apenas um conjunto de matéria e fenómenos. Daí podemos evoluir para um sistema em que já exista atração e repulsa entre os objetos, como é o caso das partículas com cargas elétricas positivas e negativas. Quando este sistema apresenta uma certa ordem e estrutura, quando aparece como um todo em que as suas partes funcionam em função desse todo, temos então o primeiro sistema organizado, onde já se nota a existência de inteligência, como é o caso do átomo, com a sua relação necessária entre protões e eletrões. A partir daí, se acrescentarmos as categorias de fusão, integração e decomposição, temos os sistemas químicos dados, por exemplo, pelas moléculas. Daqui evoluímos para sistemas que desenvolvem as categorias de assimilação e metabolismo, e temos os princípios da vida, aos quais adicionamos a categoria de reprodução. Passamos então dos sistemas físico-químicos para os organismos - sistemas orgânicos, que trabalham com um propósito - o de manterem e reproduzirem os seus próprios organismos. Daqui evoluímos para organismos mais complexos - estáticos (árvores, flores, etc.) ou animados (animais). Daqui surge a consciência nestes seres, que vai evoluindo até se atingir o estádio em que aparece um ser consciente de ser consciente – a autoconsciência – o ser humano.

A evolução do universo é assim descrita como uma evolução necessária a partir de seres mais abstratos e indeterminados até chegar a seres autoconscientes e com capacidade de alterarem e recriarem o mundo à sua volta, devido ao conhecimento de que são capazes. Finalmente, estes seres reconhecem a própria máquina do mundo em que estão inseridos e como chegaram ao ponto em que estão – a isto Hegel chamava “conhecimento absoluto” ou conhecimento da “Ideia absoluta”, que é o próprio mundo estruturado pelas suas categorias metafísicas. De facto, toda esta evolução que vimos no parágrafo anterior resulta, pode ser reduzida, à existência de categorias mentais que estão subjacentes à evolução da matéria – são as categorias de qualidade, quantidade e proporção (medida); o todo e as partes, atração-repulsa, substância-modos da substância; causalidade determinada pelo propósito do sistema (substância); ação-reação, etc. O mundo material que vemos é, assim, apenas a manifestação, a expressão sensorial, destas categorias mentais que estão na base de todos os fenómenos e objetos do mundo. As categorias mentais ou metafísicas existem, pois, “antes” das manifestações da matéria, são a hierarquia superior da existência e assim a realidade última do universo, são a estrutura mental da força da vida.

Deste modo, podemos ver que as cinco forças fundamentais da natureza consideradas pela Física (cinco, se incluirmos aqui a energia negra; as outras são eletromagnetismo, gravidade, forças nucleares forte e fraca) não são mais do que expressões das categorias metafísicas atração/integração versus repulsa/desintegração. Creio que, por sua vez, todas as categorias metafísicas, incluindo aqui agora também as categorias sentientes como “desejo, alegria e tristeza”, podem ser subsumidas numa única grande categoria, que é a fonte geradora de toda a ação do mundo – a categoria Uno versus Múltiplo. Esta origina a tensão entre o todo versus as partes, o autocontido e o dependente, o infinito e o limitado, a “atração para” e a “repulsa de”, a integração e a individuação, a harmonia e a separação. É esta tensão eterna entre a unidade primordial da força da vida, que é o Uno, e o desdobramento desta unidade numa miríade de individuações, o Múltiplo, que causa a fricção necessária para dar origem ao pulsar da vida, à necessidade de ação - à necessidade de liberdade e de afirmação individual, por um lado; e à necessidade de estabilidade, segurança e pertença, de outro lado.

Por isso, a humanidade vai passar o resto da vida a discutir a dicotomia liberdade versus segurança percebida, onde uns clamam por mais liberdade e outros por mais estabilidade (esta é talvez a polaridade masculino-feminino da força da vida). O compromisso, o equilíbrio entre a liberdade/diversidade e estabilidade/segurança é na realidade a única e grande discussão que anima e agita as leis dos povos e das sociedades. E perceber aqui as reais implicações e o que significa realmente “Liberdade” e “Segurança ou Estabilidade” é a tarefa que se impõe clarificar.

Nota: As ideias deste artigo provêm de inúmeras fontes, mas ao leitor que se identifique mais com elas sugiro procurar os seus fundamentos em Espinosa (“Ética”) e Hegel (“Lógica”), sendo que a metafísica de Hegel deve ser lida como uma continuação e refinamento das ideias teológicas de Espinosa. A prova cosmológica da existência de Deus pode ser encontrada em muitos sítios mas uma demonstração mais cuidadosa é dada, por exemplo, em Spitzer, aqui no capítulo dois, sendo que esta prova é depois estendida[RS1]  pelo argumento teleológico de Lonergan. Note-se que o facto de a causa incausada ser apenas e necessariamente uma, e não haver uma multiplicidade delas, é algo derivado logicamente e não assumido à partida.

[*] Nota ao texto acima: Um argumento frequentemente usado a favor do surgimento da célula apenas a partir da combinação "espontânea" de moléculas é a experiência nos anos 50 de Stanley Miller (então estudante de pós-graduação) que mostrou que a descarga de faíscas elétricas numa mistura de H2, CH4 e NH3, na presença de água, levou à formação de uma variedade de moléculas orgânicas, incluindo vários aminoácidos. O que é estranho é que esta experiência (até passo por cima do facto de as condições em laboratório não reproduzirem as condições no planeta há perto de 4 biliões de anos) mostra a formação de algumas moléculas orgânicas e não de células. E, além do mais, passados quase 70 anos ainda se cita a mesma experiência? Não houve desde aí experiências semelhantes que permitissem o aparecimento de algo mais aproximado a uma célula? Não é isto a mesma coisa que dizer, por analogia, que se hidrogénio e oxigénio se fundem espontaneamente e criam água, então aí está a prova de que o “pavilhão da água”, no parque da cidade do Porto, também pode surgir espontaneamente da combinação aleatória de moléculas?



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