O mal extremo é compatível com um Criador moral?


Nestes últimos dias chegou-nos a notícia de uma menina de sete anos que, no México, foi raptada por uma mulher que era conhecida da sua mãe. A menina foi raptada já com o propósito de ser violada pelo marido da raptora, o qual sofre de compulsão pedófila e disse à mulher que se ela queria que ele não violasse as suas próprias filhas então tinha que lhe arranjar outra menina de tenra idade. Há aqui a junção, veja-se, não de uma, mas de duas personalidades psicopatas. Estamos então perante aquilo a que se chama o “mal extremo” – o mal cometido por um ser humano em que dor cruel ou morte é infligido noutro ser humano sem que haja uma razão minimamente aceitável para esse comportamento. É um mal visceral, amoral, da constatação do qual muitas pessoas perdem a fé num Deus que supostamente seria bondoso, ou pelo menos, moral.
Aliás, penso que o grande obstáculo à aceitação de que o mundo tem uma ordem inteligente é a existência óbvia do mal - mais do que o desafio da ciência à visão convencional da religião. A ciência, por natureza, procura precisamente regularidades e padrões na natureza e na sociedade. E a prova de que estes existem é a própria evolução e sucesso da ciência. Embora um ato de conhecimento implique quase sempre a emergência de um novo facto que era antes ignorado (novas respostam levantam novas questões) o progressivo avanço da ciência é indiscutível como é demonstrado pela validação nos testes empíricos e pela evolução tecnológica que é baseada nessa ciência. Esta ordem na natureza pode, claro está, ser atribuída ao puro acaso – o resultado de biliões de anos de movimentos aleatórios da matéria que acabaram quase inevitavelmente por resultar num sistema com alguma ordem inteligente; ou pode ser atribuída a uma força, uma causa primordial, imbuída de algum tipo de inteligência que organiza a matéria e a transforma em unidades e sistemas inteligíveis, como os sistemas solares, os planetas e os seres vivos. Sem querer agora discutir o mérito destas interpretações acerca da origem de uma ordem inteligente no universo, a ciência abre a porta, ou pelo menos não a fecha, à existência de um Criador que, por ser inteligente, lhe basta apenas mais um passinho para ser moral ou bondoso. A aceitação e conciliação, portanto, quer da visão estritamente científica, quer da visão religiosa tradicional, não é incompatível, bastando aqui apenas um ligeiro “salto de fé” para passar do Deus impessoal da ciência, enquanto motor ou força da vida, para o Deus pessoal da religião - uma entidade movida por desideratos morais. E, dado que a fé é algo que está necessariamente presente no nosso dia a dia – fé em toda a informação que nos chega desde que nascemos e em relação à qual é humanamente impossível fazermos a constatação da prova de cada um desses ziliões de factos adquiridos – a fé em Deus é apenas mais um ato de fé entre inumeráveis outros.
O grande problema para a aceitação de um Criador moral e, logo, de um universo que se coadune com a própria natureza moral do ser humano – um ser que distingue e tem noção do que é o bem e o que é o mal, embora possa discordar entre si em relação a pontos concretos – é portanto a presença do mal. Um universo moral, em que não haveria o mal, seria um universo mais acolhedor, mais amoroso, mais humano, o qual sentiríamos ser uma espécie de lar – o lar ideal fundado com amor e preservado através dos tempos. O ser humano anseia por este universo, o abraço último que nos envolve a todos e nos conforta e nos diz que afinal tudo está bem, que não temos razões para ter medos e receios.
Mas o mal natural – desastres naturais, doenças cruéis, acidentes – e o mal moral, particularmente o mal extremo, conforme ilustrado no início deste artigo, desafiam e derrotam a boa vontade que muitos têm em acreditar neste lar-universo e no seu pai bondoso. Sem esta trave-mestra, o mundo é assim um lugar mais ou menos hostil ou inóspito, onde estamos dependentes dos humores, dos caprichos e da bondade intermitente dos nossos companheiros nesta viagem da vida. Quão melhor seria um mundo que tivesse sido realmente feito para a nossa felicidade, que nos aceitasse a todos como somos e nos envolvesse num carinho maternal.
O princípio para a aceitação da ideia de um universo bom para os homens é, portanto, a explicação do mal no mundo - o mal natural e, sobretudo o mal moral, particularmente o mal moral extremo. Num próximo artigo tentarei refletir consigo sobre este ponto fundamental para a nossa visão e reconciliação com o mundo. Até lá agradeço as sugestões e ideias que tiver sobre o assunto. Uma boa semana, com tranquilidade e paz de espírito.

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