As Raízes do Medo: o Homem e o Mundo




O Homem e o Mundo

A catástrofe climática tornou-se num tema incontornável nos últimos anos. No entanto, o assunto dificilmente será novo. Desde sempre que o medo primordial do ser humano face à sua condição de enorme vulnerabilidade perante o mundo que o rodeia exortou a grandes anseios relativamente à fúria divina que, volta não volta, se soltava infligindo terríveis perdas para os seres humanos. Aliás, durante a maior parte da existência humana, desde o alvor da consciência do Homo Sapiens até ao aparecimento das primeiras religiões monoteístas, o mundo que nos rodeava e o reino do espírito eram uma e única coisa: tudo no mundo era uno e divino - e tudo o que nele acontecia era derivado da vontade dos deuses que comandavam o seu destino.

As religiões monoteístas são a primeira transformação espiritual relevante no Homem. Onde se passa a entender Deus como uma essência divina separada do mundo material, separa-se também o plano do homem, que habita no mundo material, do plano divino que, à parte, e a priori, consubstancia a verdadeira essência e sustenta o mundo. O Homem, no entanto, participa dessa ordem espiritual superior ainda: no mundo material, o corpo; no mundo do divino, o espírito. A salvação, naturalmente, residiria no plano verdadeiro, o espiritual, sendo o mundo material que nos rodeia uma representação, logo com carácter secundário, do divino primordial.

O Cristianismo veio, paradoxalmente, aprofundar esta divisão. Onde antes o material se desprezava face ao divino, com a vinda de Cristo ao mundo - Deus feito Homem -, passou a valorizar-se o mundo material, bem como a função do Homem nele: afinal, se o mundo material merece receber Deus em corpo e matéria, então não poderá ser tão desprezível assim. Do mesmo modo, se Deus se fez Homem, um Homem como nós, então o Homem terá que ter dentro de si uma determinada dignidade que de forma intrínseca lhe permitiu a graça de ser salvo.

É desta aposta Cristã no mundo material, desta visão do mundo como obra de Deus e do Homem como instrumento da Criação, que advém, desde logo, a crescente importância do mundo material - apenas que acoplada com uma crença na superior dignidade da vida humana. Do mesmo modo, e daí derivado apesar de despercebido, assim ocorreu o nascimento do espírito verdadeiramente materialista. Investir no mundo, trabalhar, fazer, esses se revelam como os desígnios e valores de quem passou a atribuir importância ao mundo material - um mundo criado, é certo, mas digno na medida que mereceu a vinda de Deus. Este materialismo soltou a imaginação do Homem e, precisamente, não poderia ter deixado de ser na civilização Cristã que o desenvolvimento tecnológico e material ocorreu. É do investimento no mundo material que o homem recebe os frutos materiais desse mesmo investimento. Pelo contrário, no mundo muçulmano outrora líder e mais avançado, as luzes do desenvolvimento foram apagando-se à medida que a mordaça da teocracia maometana desceu sobre os seus espíritos.

O Cristianismo forneceu também um equilíbrio emocional aos anseios naturais perante o mundo. Por um lado, como se explicou acima, impelia ao investimento no plano material; por outro, ao incorporar o apocalipse no imaginário dos seus fieis, bem como o caminho da salvação perante esse mesmo apocalipse - seja ele o colectivo ou o individual que nos aguarda no final do caminho -, acalmava os espíritos face à natural fragilidade humana. Ou seja, por um lado o Cristianismo impeliu à acção transformadora do mundo, mas, por outro, também ofereceu, ou permitiu, a coragem para lidar com as adversidades, bem como as calamidades, que fazem parte do caminho de quem se arrisca no desconhecido.

Deste ímpeto descobridor e reformador derivou o sucesso tremendo da civilização Ocidental. No entanto, precisamente porque abriu as portas do materialismo, também lançou entropicamente as sementes da sua própria negação: à medida que o Homem se agigantou perante o mundo, ao colher os imensos frutos materiais da sua conquista, a certa altura se começou a firmar no imaginário humano que a salvação, ao invés de residir no plano espiritual, poderia bem residir também ela no mundo material: a promessa do progresso futuro que ao tudo curar e tudo controlar traria a vida eterna e abundante, não no paraíso após a morte, mas no aqui e agora da vida terrena. Assim, como Marcel Gauchet famosamente afirmou, o Cristianismo foi a religião que permitiu a saída da religião. O sucesso material e a arrogância perante o nosso próprio sucesso fizeram o resto. E de tanto separar o mundo divino do material, ao se pretender Deus, o Homem, à medida que se virava cada vez mais aprofundadamente para o plano material, proporcionalmente foi afastando o divino e o espiritual da sua concepção da realidade. Eventualmente, com a abundância material, dispensou por completo do plano divino. O real é, pois então, apenas aqui e agora - para sempre.

A vida do Homo Occidentis é hoje o fruto da sua própria criação. Nascido num mundo divino, caído no deserto material e transformado ele próprio, primeiro, no punho de Deus e, depois, em Deus ele mesmo: o novo Criador e, mais relevante, o controlador do mundo. O planeta, outrora uma força desconhecida e ameaçadora, é hoje conceptualmente o jardim do Homem. Do planeta, como sua posse que é, o Homem deve cuidar, tratar, proteger. A ideia que reside na base deste movimento eco-alarmista, atente-se, é precisamente esta inversão que, fruto do que acima escrevi, apenas existe no pensamento Ocidental: que é o planeta que está sob o controlo, e dependência, do Homem, e não o inverso.

Assoberbados pelo progresso tecnológico que se revela ele próprio como mágico, na ilusão de tudo poder controlar, logo os indivíduos do Século XXI imaginam que tudo o que acontece no mundo, quer o bom quer o mau, apenas poderá ser consequência da acção humana. Nem de outra forma poderia ser.

Mais: como agente controlador do mundo, logo o verdadeiro fundamento moral da nossa própria vida, todo o mal, seja ele real ou imaginado, que coloca em causa o planeta, incluindo o apocalipse, apenas poderá ter duas origens: ou exterior ao próprio planeta - consubstanciado no imaginário colectivo, por exemplo, num desastre natural idêntico ao asteróide que vitimou os dinossauros ou, menos "natural", revelado numa invasão alienígena -, ou interior a esse mesmo planeta. E aqui, naturalmente, - seja por intermédio de uma guerra nuclear, um vírus mal guardado, o advento da inteligência artificial que se rebela contra o criador, ou, claro está, as alterações climáticas geradas pelo próprio Homem - imaginamos os responsáveis como sendo invariavelmente nós próprios.

Aliás, tanto se imagina que o Homem controla o mundo como que o pode transcender. É precisamente desta ideia de transcendência que derivam os novos movimentos de protecção da Natureza que, por um lado, antropomorfizam o mundo oferecendo motivações humanas ao comportamento dos animais como, por outro, imagina o Homem capaz de ultrapassar a sua própria condição natural: a de ter que matar para sobreviver. Assim sendo, o Homem é agora o único sustentáculo moral do mundo, e é pela bitola humana que se caracterizam as mortes dos bichos como igualmente imorais. E da capacidade transcendente, proto-divina, do Homem, nasce a obrigação de oferecer à Natureza aquilo que exige para si próprio: não matar, não ferir, não magoar. Também esta ideia é uma ideia de controlo, um controlo tão absoluto - quanto irrealista - que se imagina capaz de superar a condição natural do homem e dos outros seres que compõem o mundo.

Complexos de Grandeza e o Cientismo

Assim nasce a ideia de que tudo no mundo gira à volta do Homem, e não o contrário. Alterações no clima, os furacões, os terramotos, onde antes o Homem primitivo imaginava punições pela sua conduta, vêem agora os homens e mulheres de hoje as falhas do seu controlo, ou seja, as suas próprias responsabilidades. Assim, e paradoxalmente, o ciclo completa-se e regressa-se ao início: tal como na mente do Homem primitivo, os desastres que nos acontecem no mundo ocorrem por nossa própria culpa. Daí que tanto na mente moderna como na primitiva as consequências desses desastres naturais representam verdadeiras punições.

No entanto, perante a angústia do desconhecido que se revela no imprevisto com que o mundo actua perante os nossos olhos, mas com a concepção de que esse imprevisto deriva do nosso descuido no controlo que detemos desse mesmo mundo, então a resposta ao imprevisto apenas poderá ser a necessidade de mais e melhor controlo.

No entanto, e este é o ponto fundamental, esse domínio do Homem sobre a Natureza nunca verdadeiramente ocorreu, salvo no imaginário infantil do Homo Occidentis. O mundo sempre permaneceu em larga medida estranho, os seus mistérios nunca completamente resolvidos. Mais, e principalmente: os seus mecanismos, com as suas causas e consequências procedimentais, perduram na sua maior parte completamente desconhecidos.

Acresce-se que a ciência, por definição, nunca é conclusiva: pelo contrário, é sempre parcial e um permanente ponto de partida para ser perpetuamente melhorada, aprofundada e corrigida. Daí que não apenas é uma ilusão de grandeza a ideia de que tudo o que ocorre no mundo é responsabilidade de alterações causadas pelo Homem como é extremamente implausível que medidas tomadas pelo Homem tenham a capacidade de gerar correcções ao funcionamento do próprio mundo, sejam elas quais forem.

De previsões sobre o fim do mundo se faz a História. Naturalmente, essas previsões apocalípticas são tanto mais capazes de granjear apoio popular quanto mais elas encarnarem a linguagem mitológica do seu tempo. Esse pensamento mitológico, com a expulsão do divino da nossa concepção da realidade, volta hoje a residir no mundo material que nos rodeia. A separação acima referida que o monoteísmo permitiu e que o Cristianismo aprofundou, com a dispensa do divino, desapareceu. O mundo, uma vez mais monista, regressa ao momento primitivo e, tanto o Homem como a matéria que compõe o que o rodeia, bem como a causa da Criação, e o que sustenta o mundo, é hoje tudo uma coisa só: matéria, matéria, matéria. E o que interpreta a matéria, logo descodifica a realidade e representa fielmente a verdade? A ciência, naturalmente. Num mundo estritamente material, o estudo da matéria torna-se na única linguagem do Homem para interagir com, e tentar compreender, a realidade.

No entanto, porque, independentemente dos quadros mentais com que interpreta a realidade, o Homem não deixa de ser aquilo que é, o pensamento mitológico, bem acoplado com a ilusão de certeza e grandeza, é transformado necessariamente também na linguagem do nosso zeitgeist, ou seja: em linguagem científica. Daqui deriva o Cientismo, ou seja, a crença que a ciência é um instrumento de verdadeira descodificação do mundo e capaz de oferecer salvação. Atente-se no termo "verdadeira" que utilizei. Porque é precisamente isso que a ciência nunca é: verdadeira, no sentido absoluto do termo. Qualquer postulado científico, por mais comprovado que seja, é sempre uma hipótese, tanto mais possível e plausível quanto comprovada através da experimentação. Agora verdadeira no sentido de se saber como absoluta e universalmente Verdade? Isso é aquilo que a ciência nunca foi nem nunca poderá ser: o Homem está sempre limitado ao subjectivo, ao parcial, ao temporário. Os comos sem se saberem os porquês, como Hume bem explicou no seu Garfo, apenas se prevêem de forma transitória enquanto não se comprovarem como falsos.

É, no entanto, no linguarejar pseudo-científico do cientismo que tudo hoje se faz: desde o marquetista que vende detergente vestido de cientista até às teses políticas baseadas nos últimos estudos científicos, desde os métodos de organização profissional até às soluções para a vida terrena eterna, ou, ainda, desde os princípios da economia financeira até às melhores formas de como educar uma criança: tudo a ciência resolve e transforma, ou seja, e no fundo, tudo a ciência controla.

No entanto, esse controlo, precisamente por se alicerçar em conhecimento condicional, ao contrário da crendice popular, nunca é, primeiro, infalível e, depois, definitivo. Muito pelo contrário, apenas pode ser mais ou menos profundo. É dessa profundidade que se afere a sua credibilidade, e desta as razões para termos os postulados científicos propostas como mais ou menos credíveis. A questão é então: como se pode aferir a credibilidade de determinado ramo da ciência? Ora, precisamente pela sua capacidade de prever o futuro.

Daqui sai um princípio fundamental: uma ciência, ou um conhecimento, pode justamente considerar-se consolidada e credível quando as previsões que estabelece atempadamente a priori se confirmam de forma reiterada e não arbitrária a posteriori pela realidade dos factos.

A Ciência do Clima e a Verdade

Assim sendo, e a propósito da questão climática, uma pergunta desde logo se impõe: é a ciência climática (a climatologia) capaz de fazer previsões sobre o clima que se tenham comprovado no mundo real? Muito pelo contrário. Logo nos anos 70, numa altura de algum ligeiro arrefecimento, os cientistas que estudavam a temática alertaram para a enorme possibilidade de um arrefecimento global causado pelo Homem. Isto apenas para se confirmar que o planeta em seguida aqueceu. Logo depois, a partir dos anos 90, começaram outros tantos cientistas a alertar para o aquecimento global, também ele causado pelo Homem, e prevendo aquecimentos tremendos e catástrofes maiores logo no ano 2000 que também não se concretizaram. Aliás, tanto assim foi que hoje, ao invés do discurso do início do século, não se fala de "aquecimento global", mas sim de "alterações climáticas". Agora, seja aquecimento no Verão ou arrefecimento no Inverno, apareçam mais ou menos furacões, desde que seja uma alteração esta é sempre causada pelo Homem. Mas se o clima sempre mudou, se o planeta já esteve muito mais quente do que agora - muito antes do aparecimento do Homem -, tal como também já esteve muito mais frio, e se a única constante é a permanente alteração climática ao longo de milhares de milhões de anos, então como aferir agora a credibilidade da previsão quando aquilo que esta postula é precisamente que o clima vai continuar a fazer exactamente o mesmo que sempre fez, ou seja, alterar-se?

Ainda no tema da confirmação empírica das previsões científicas. Como poderão os cientistas postularem "verdades consensuais" que implicam previsões a cem anos quando não são capazes de compreender os mecanismos complexos do clima o suficiente para fazer uma previsão igualmente infalível, verdadeira e consensual sobre como vai estar o clima daqui a um mês?

Não apenas a ideia de um consenso definitivo e universal sobre um tema é, por si só, anti-científica como, pior, este ramo da ciência não tem qualquer credibilidade na capacidade de previsão, quer no macro - todas as previsões macro desde os anos 70 falharam -, quer no micro - o clima é apenas previsto, e mesmo aí de forma falível, com dias de antecedência.

Prudência e Cautela

Em suma: o pensamento apocalíptico é perfeitamente natural e faz parte da condição humana. O apocalipse foi salvaguardado da ordem do dia na medida em que, apesar do investimento material no mundo, o Cristianismo garantia paralelamente uma salvação espiritual. Com a ausência do plano espiritual no secularismo contemporâneo desaparece o conforto da salvação espiritual, apenas permanecendo como elemento salvífico o triunfo, e o controlo, do mundo material. No entanto, esse controlo é ilusório e, por isso mesmo, o mundo continua a fornecer o imprevisto, o perigo e a inspirar o receio de sempre. Assim sendo, comprometidos entre uma crença infundada no controlo sobre o destino do mundo e assombrados por acontecimentos inesperados, o receio do descontrolo consubstancia-se numa ansiedade - sentida como uma necessidade - por mais e mais controlo. O instrumento deste controlo, naturalmente, é a ciência e a crença que através dela tudo se poderá conhecer e controlar até ao mais ínfimo pormenor. No entanto, porque é feita de homens, é também através da ciência que sai essa mesma ansiedade e esse mesmo pensamento apocalíptico, nomeadamente consubstanciado na questão das alterações climáticas. No entanto, e paradoxalmente à (infundada) crença popular na infalibilidade da ciência, até hoje todos os modelos macro e micro de previsão climatérica falharam ou, no mínimo, apresentam uma capacidade previdente muito reduzida.

Quer isto significar que as alterações climáticas são forçosamente uma ilusão do nosso inconsciente? Não. Pode muito bem acontecer que, de facto, a acção do Homem tenha consequências nefastas para o clima da Terra. No entanto, considerando o discurso anti-científico que apregoa uma verdade que quem questiona, incluindo académicos certificados e respeitados na área, é imediatamente desacreditado como louco, estúpido ou corrupto, parece-me que prudência e cautela deverá ser o caminho a seguir. Do mesmo modo, dificilmente se poderá esperar que a crença infundada na capacidade de controlo planetário do Homem derive num controlo factual sobre o clima: não se pode controlar o que se desconhece. E considerando a inexistência no ramo da climatologia de uma capacidade de correctamente prever o comportamento climático do planeta é de desconfiar sobre previsões altamente catastróficas, repentinas e veiculadas como verdades indesmentíveis. Ainda para mais considerando que nunca se morreu tão pouco no planeta por causa do clima como hoje.

Comentários

  1. Em ciência há um factor decisivo de reposição da verdade, a experiência e a Natureza o fiel da Balança. Na matemática toda ela inventada pelos homens, os fins da natureza são imitados pelos meios, enquanto que a natureza dos homens --abundantemente estudada e vilipendiada por eles mesmos-- atem-se às crenças e nos dirigentes das histórias que geram adesão social.
    A ciência erra, nunca o homem, mas quando tudo corre bem/mal como previsto e justificado há muita gente que reconhece o indivíduo e esquece a ciência, como se fosse --perceptível para quem não pode estudar, nos outros casos tratam-se de alíneas, rebuscadas teses, perspectivas e outras desfaçatezes fracturantes-- um acto isolado. A maioria das pessoas não sabe dar valor ao passado como ele é: um monstruoso amontoado de erros (partindo de bons/maus fins), de onde só a força da sobrevivência, que permitiu a construção de algo cuja única prestação é dar presença física aos dias de hoje.

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