Mad Max

Tenho 57 anos. Não é verdade, tenho só 48. Ou 35, mas com cinco ou seis décadas de mundos - continentes, escritórios, estradas, alas de oncologia, salas de aula - às costas, por forma que parece, ou assim pode dizer-se, que tenho 57 anos,

Uma carrinha branca estaciona a dois metros do meu portão; daqui, de onde me encontro, conseguirei abater entre quatro a seis ambulantes que venham galgar as grades, talvez o dobro se não forem profissionalizados e quiserem forçar a entrada em série. No meu cenário de base, em que os sabujos do fisco vêm sedentos cobrar, imagino com pirotecnia conexa Afonso Teodoro Lopes de Lopes, técnico superior de conformidade sudorípara, a adentrar a minha deusdada propriedade enquanto a física dos projécteis plúmbeos o eleva ao caneiro que a Junta de Freguesia cá pôs em tempos de antanho. 

Um bramido dimana do caminho areado, batido e recoberto do lixo alheio, pelo qual me é cobrado um imposto anual muito superior ao esforço braçal de dez escravos Númidas, mediante um papelinho onde se fala de coisas modernas das quais não usufruo como esgotos, asfalto e tratamento de resíduos - de cuja cobrança não posso eximir-me ainda assim,

A arma está municiada, e carrego-a ciente de que poderei estar a jardas de um desfecho horrendo, ainda assim melhor que um horror sem desfecho, para o meu capítulo.

Espreito, estugo o olhar, e há um galarote, um mancebito que assoma. Ó chefe!, grita, ó chefe. Acerco-me. A carrinha traz o logotipo da SEUR, marca que propõe cobrar dinheiro para distribuir encomendas. Ó chefe. Abandono a cobertura das ervas, encosto a espingarda ao muro onde abundam glicínias, e com a mão esquerda numa faca serrada de 16 polegadas que pende do cinto, deixo-me chegar mais perto da voz.

Efectivamente ali está uma carrinha branca. Ali estou eu com os meus 183 anos, bem somados com a ponderação que me é conferida pelo tempo que passei neste campo de concentração. Ali está um monte de protoplasma falante. E bolça, num tom de quem vem ali gastar-se em mainatos, "É VOCÊ O FERNANDO? É QUE EU VIM CÁ ONTEM E NÃO ME ATENDEU, ENTÃO QUER ISTO OU MANDO PARA TRÁS?" 

Os dedos, ainda cinco pela graça de quem me fez, apertam-se em torno de um familiaríssimo cabo rígido, feito para esta mão, ensaiado milhares de vezes no seio de cabaças onde se pôde ir desenhando avatares da raiva contra o porcino servente da Coisa Amorfa.

Soergo o olhar medindo a durabilidade ao rapazinho. É mais jovem que eu. Mais forte. Mais ágil.  Mais rápido. Provavelmente mais rico na medida em que o Estado, ao vê-lo na sua condição de voto útil pela duração de trinta ou mais anos, dar-lhe-á estipêndio à medida. 

Tomo uma decisão irrevogável.

Assino o papel. Recebo a minha encomenda. Mando saudades para a tia Isadora. Reentro na minha casa, encosto a arma à esquina onde tenho um poster do Woody Harrelson que trouxe do Cinecittà, e escrevo esta mensagem.

A carrinha partiu entretanto, com o seu timoneiro galhardo de tudo quanto não sabe; vai bater a outra freguesia, vai saber de outro chefe. Talvez em calções, calçado a chinelos, porque a vida não está para trabalhos difíceis e assim como assim temos o Pai Estado que os faz por nós, de modos que mais vale andar solto, tranquilo, desprevenido e permeável aos filhos do Pai que entendam entregar-nos aquilo que é nosso somente e conforme lhes seja aprazível.

Confiro que na gaveta dos talheres de Natal as caixas de zagalote estão inalteradas, suficientes para deixar-me ir embora numa apoteose visionável.

Sirvo-me de uma taça e sorrio.

Estou nas Honduras, onde sempre soube que acabaria os meus dias.

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