Das liberdades e contra a corrente


Despertado pelo primeiro texto do Nuno Lebreiro neste blog decidi fazer uma incursão em leituras a merecerem actualização e revisão.

Partindo de uma colectânea de textos de Isaiah Berlin intitulada Contra a corrente, repesco algumas ideias...

“Liberdade é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura, ou felicidade humana, ou uma consciência tranquila”, I. Berlin

Magna Carta de 1215: Rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et lege — o Rei não deve estar abaixo dos homens, mas abaixo de Deus e da lei.
E ainda, segundo a Declaração de Independência americana, em 1776: “Sustentamos que estas verdades são auto-evidentes. Que todos os homens foram criados iguais, que eles foram dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão o direito à Vida, Liberdade e busca da Felicidade.”

Na busca de uma uniformização de direitos iguais para todos, alicerçados no ideal de uma liberdade positiva plena, as sociedades têm produzido regimes que acabam no exercício de poder totalitário conduzindo às maiores catástrofes e desastres da humanidade com as dezenas de milhões de mortos nos países comunistas do século XX, de que não estamos libertos de alguma continuidade no presente. 
Isto quando se pretende estabelecer critérios que nivelam as liberdades negativas, entendidas como a salvaguarda da interferência de outros na esfera de cada um e, em simultâneo, se decreta o direito ao exercício das liberdades individuais positivas.

Assim sendo, há que realçar que um indivíduo será tanto mais livre quanto menor for a interferência de terceiros na sua esfera de decisão pessoal. 

Em termos políticos, o ideal da liberdade negativa supõe a existência de um Estado limitado pela lei, que respeita a esfera privada das decisões pessoais, e cujo principal objectivo é garantir que a liberdade de uns não interfere na liberdade de outros.

Uma outra dimensão da liberdade é a denominada "liberdade positiva” — entendida como “capacidade para tornar efectiva a escolha que a liberdade negativa permite fazer”. Rousseau e Marx, e Nietzsche, entre outros, foram ilustres e reconhecidos defensores da chamada “liberdade positiva”, e severos críticos da chamada “hipocrisia” da liberdade negativa — também por eles classificada de “liberdade burguesa”.

Isahia Berlin concluiu que “o pluralismo, com a medida de liberdade ‘negativa’ que ele implica, parece-me ser um ideal mais verdadeiro e mais humano do que os objectivos daqueles que procuram nas grandes, disciplinadas e autoritárias estruturas o ideal do auto-governo ‘positivo’, por classes, ou povos, ou pelo conjunto da humanidade. É mais verdadeiro, porque pelo menos reconhece o facto de que os objectivos humanos são muitos, nem todos eles comensuráveis, e em perpétua rivalidade uns com os outros.”.

Numa releitura de autores clássicos do liberalismo, Berlin afirma: "Os liberais da primeira metade do século XIX previram, corretamente, que esse sentido “positivo" poderia destruir facilmente muitas das liberdades “negativas" que eles consideravam sagradas. Apontaram que a soberania do povo poderia destruir facilmente a dos indivíduos. […] A democracia pode desarmar uma dada oligarquia, um dado indivíduo ou conjunto de indivíduos privilegiado, mas ainda pode esmagar indivíduos tão impiedosamente quanto qualquer governante anterior. Um direito igual de oprimir — ou interferir — não é equivalente a liberdade.

Outra das vozes mais inconformadas e que reflectiu sobre as experiências totalitárias do século passado foi Hannah Arendt, cujas obras mais difundidas são, talvez, A condição humana, Origem do totalitarismo, A banalidade do mal.
Segundo H. Arendt, o surgimento das Ciências Sociais e Políticas, nos século XIX e XX, ampliaram ainda mais a brecha entre liberdade e política, pois o governo, que desde o início da idade moderna fora identificado como o domínio total do político, era agora considerado como o protetor nomeado não tanto da liberdade, como do processo vital, dos interesses da sociedade e dos indivíduos. Surge, daí, a crítica aos riscos de a política permear todas as ações humanas, como ocorreu no totalitarismo, principalmente ao desconsiderar a pluralidade dos homens na Terra.

Numa passagem interessante de sua obra dedicada às revoluções, Arendt afirma: "Todas essas liberdades, às quais poderíamos acrescentar nossas exigências de estarmos livres do medo e da fome, são, é claro, essencialmente negativas; resultam da libertação, mas não constituem de maneira nenhuma o conteúdo concreto da liberdade [...], que é a de participar nos assuntos públicos ou a admissão na esfera pública. Se a revolução visasse apenas à garantia dos direitos civis, estaria visando não à liberdade, e sim à libertação de governos que haviam abusado de seus poderes e violado direitos sólidos e consagrados."

Ambos os ilustres autores do século passado concordam sobre os riscos do governo soberano para a restrição de liberdade individual. Berlin considera Rousseau o inimigo mais perigoso da liberdade individual, pois ele havia declarado que “ao me dar a todos, não me dou a ninguém”.
Arendt também considerava o conceito de soberania segundo Rousseau como a "consequência política mais perniciosa e perigosa da equação filosófica de liberdade com livre-arbítrio”, pois conduzem à negação da liberdade humana.

Assim, há que nadar contra a corrente do igualitarismo e da igualdade por decreto, do normativismo legislativo, da terraplanagem da lei que tudo regula, e tudo e a todos limita.

Bem vindos ao Contra corrente!

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