A Ilusão

Vamos esclarecer o que se entende por “Ilusão” neste texto. 

Assumindo que a complexidade do real social e económico humano é infinita, inatingível a totalidade do conhecimento disponível, impossível obter o futuro conhecimento ainda não encontrado ou descoberto, qualquer narrativa, qualquer teoria sobre o real, é uma Ilusão. Será mais ou menos correcta, mais falsificável ou não, mas apenas serve uma “garantia” de compreensão de algo sempre parcial, incompleto, e sobretudo contrariável se as premissas ou pontos de partida foram diferentes. Uma narrativa nunca é o Real. Pode mesmo ser operativa, mas simultaneamente falsa na totalidade ou parcialmente. É uma interpretação da realidade objectiva, inatingível, por isso uma Ilusão de que temos uma teoria pelo menos operacionalizável do mesmo Real. Mas, nada o garante absolutamente, nem que seja a melhor entre todas as disponíveis Aceitamo-la porque as “evidências”, a imposição organizacional, e os incentivos nela incluídos, nos fazem praticá-la.  

Exemplificando: os chamados modelos capitalistas, socialistas, comunistas, fascistas, anarquistas, ou outros não passam de Ilusões. Porquê? Essencialmente porque até ao momento não se chegou à comprovação de que qualquer deles seja especificamente operativo de sucesso real e concreto. Nenhum sistema político, ou regime, até ao momento é puramente de um ou outro cariz. Países capitalistas onde faz parte da Ilusão o “Livre Mercado” são estatalmente controlados, regulados, determinados por decisões centralizadas, políticas económicas e sociais, subsídios, quotas, limites, oligopólios e monopólios (negação do Livre Mercado, portanto), concorrência limitada. Por outro lado, países comunistas, onde teoricamente não há Livre Mercado, deixam a competição e iniciativa privada acontecer essencialmente pelo motivo explicado acima de que o Poder pela Força é oposto à criatividade e à inovação. O fascismo, corporativista por definição, também é socialista na operação económica e social definindo quotas, limites e determinações estratégicas, tal como faz o capitalismo ou o comunismo. 

Como exemplos concretos: a União Soviética, em cerca de apenas 50 anos, de um país de feudalismo camponês, transformou-se numa potência espacial, nuclear e uma das maiores capacidades industriais do planeta  usando (teoricamente ao nível da Ilusão) o comunismo. Comunismo esse que, teoricamente, à luz da narrativa (Ilusão) preferida pelos defensores do Livre Mercado é contrário, mesmo impede, o desenvolvimento sócio-económico,    

Basicamente, estes “ismos”, são encapsulações de Ilusões múltiplas que servem os fins da manutenção das pirâmides, sendo o fim último e concreto da pirâmide, o da manutenção primária do líder e de si própria dentro das lógicas e grupos de poder interno de exploração dos recursos económicos disponíveis ou conquistáveis. 

Assim, os ismos são sobretudo instrumentos de agregação imaginária do colectivo - teorias do Poder e sua organização - que mascaram a real natureza do mesmo Poder que é “personalizado” ao líder (estalinismo, leninismo, maoísmo, nazismo hitleriano, fascismo de Mussolini,), ou identificada pela Ilusão de base do regime criado (caso da “democracia”) que depende menos de uma variação dos líderes aparentes/transientes, mas mais da força da Ilusão. o ismo que se adapta à democracia será o republicanismo, (praticado também em monarquias) que teve a utilidade fundamental de mover os sistemas políticos para a actual modernidade política que pretende significar “o governo para o povo, pelo povo”. Na minha visão, defendo que, na substância, se mudou pouco, mas muito na aparência, e que a essência do poder fundamental (detentores/autores, principais agentes, e fontes)  se manteve igual. 

Os ismos, na maior parte dos casos, aparecem mesmo antes do surgimento e ascensão das personas  que os implementam. A título de exemplos:

O nacional-socialismo e os “irmãos” italianos e japoneses, são a implementação prática da teoria keynesiana, associada à lógica da supremacia racial anglo-saxónica, e aos “ideais” fabianos afirmados a partir de 1884 no Reino Unido, financiado pelos poderes financeiros de Wall Street, apoiada no desenvolvimento da disciplina da Propaganda desenvolvida por Edward Bernays para os industriais americanos; 

O socialismo resulta da teoria marxista cujo desenvolvimento (feito em Londres) foi financiado também por fabianos, aristocratas e industriais britânicos. Marx foi pago, sustentado, para desenvolver a narrativa que iria fundamentar teoricamente a clivagem ideológica fundamental pós-revolução Industrial, por actores interessados no desenvolvimento da própria Revolução Industrial, e em controlar as dinâmicas futuras resultantes das mudanças sociais introduzidas. Quem conhece o conceito solve et coagula está familiarizado com o modo como é usado. Aliás, a própria dialéctica marxista herda a dinâmica, quando por via de múltiplas iterações dentro do capitalismo, o socialismo será atingido, até ao final estágio, o comunismo;

O liberalismo, e na sua vertente apelidada de “radical” o libertarianismo, foram fundados, também no Reino Unido, financiados pelos mesmos industriais, dentro da London School of Economics, depois das influências dos, também britânicos, Adam Smith, David Ricardo e outros. A Escola Austríaca, fundada pelos monarcas da dinastia de Habsburgo, muito relacionados também ao Império Britânico. O liberalismo, serve fundamentalmente um efeito esperado na Ilusão: a defesa e desenvolvimento da noção de “livre-mercado”, estimulando o aparecimento de criadores e desenvolvedores, engenheiros, teóricos das ciências humanas e outras disciplinas, afirmando a supremacia da Liberdade Individual como motor principal da História. Ironicamente, isto aconteceu num mundo de poder centralizado, top-down, onde os impulsionadores da corrente doutrinária “descentralizante” foram os próprios detentores do poder central. Portanto, o ismo liberalismo, foi um incentivo necessário enquanto foi necessário. Hoje, o liberalismo, transformado num auxiliar do desconstrutivismo, pugna maioritariamente pelo malthusianismo via alteração da sua Ilusão central. À Liberdade Individual foi retirado o aspecto da correspondente Responsabilidade Individual, transferindo-a para o estado ou colectividade. Outro aspecto utilitário do liberalismo (e talvez o mais pernicioso) foi a fundamentação doutrinária no homo economicus assumindo a total preponderância dos aspectos económicos, hiper desenvolvendo o economicismo, algo que serve a fundamental utilidade operativa de obscurecer os aspectos do poder real, que se exerce e mantém, prevalentemente noutras esferas. Como último aspecto relativo ao libertarianismo, verifico uma obsessão com a destruição do estado e males que gera, obviando de modo quase completo, a existência e essência da oligarquia que, por detrás dos estados recriados após as quedas (condicionadas, criadas mesmo, pela própria oligarquia ocidental) monárquicas via; Iluminismo, Revolução Francesa, e uma Guerra Mundial) e continua a dirigir (neste momento de modo virtualmente absolutista) na sombra o que os estados devem e podem fazer. Assumir a total organicidade de tudo, tem o tremendo custo de apontar as munições mais fortes  a um pretenso inimigo principal (o estado) quando, de facto, esse é outro. E o Estado, o bébé (que a maior parte adora e pensa depender de), deve ser deitado fora com a água do banho, quando os “maus” são os progenitores do referido bébé. Uma débil “possibilidade” de resolução dos problemas, e iniquidades, do  sistema, claro.        

O que é persistente, em qualquer pirâmide nacional ou não, em todos os tempos e Histórias, é que um grupo chefiado por líder mais ou menos transiente, controla via grupos intermédios (ou “departamentos”) e gestão da Ilusão específica da pirâmide, um grupo ou grupos maiores para extração de recursos e expansão do seu “lebensraum”. E este  lebensraum é expandido e mantido, ou rescindido, muito mais de acordo com as características culturais e genéticas do grupo, ou grupos nacionais, tipos de recursos disponíveis e capacidade tecnológica e científica, do que com o eventual sistema político-económico que teoricamente resolvem, ou afirmam, adoptar. A pessoa e a Ilusão são os factores determinantes. Mesmo quando a “pessoa” está na sombra, o que me parece ser o caso da chamada “democracia-ocidental”. Noutra oportunidade poderemos explorar esta questão da sombra. Mais à frente é também referida, mas deixemos a sua essência, por agora. 

Considerando um último aspecto dos ismos. A prevalência, na prática organizacional nas pirâmides, é o mais puro e simples dos pragmatismos. “Tem de se fazer o que tem de se fazer para manter a estabilidade e desenvolvimento do poder pessoal, departamental ou piramidal”. Assim, duvido muito que qualquer líder político de topo, antes de tomar uma decisão, de grande ou pequeno impacto ou alcance, vá consultar o manual político do ismo que “abraça” na sua Ilusão. - Não. Faz apenas o que se traduz em maior lucro, ou menos prejuízo. Portanto, os ismos podem ser academicamente interessantes, produzir oceanos de potencial de discussão teórica e retórica de obtenção de poder, mas são menos úteis na obtenção e manutenção concreta no Poder. O essencial é criar, manter e desenvolver instrumentos de produção e captura de recursos de aumento, manutenção ou defesa, do lebensraum. Pragmaticamente e sem se deixar “atrapalhar” por princípios ideológicos pretensamente gerais.

Apenas os radicais nas margens e periferias do Poder, podem basear a maior parte da sua acção na fundamentação ideológica. Isso, porque tal táctica, permite articulação e conteúdo da retórica, avanço na relevância, reputação e fama, obtenção de proveitos de agitação das massas, e mesmo lugares na hierarquia da pirâmide. Mas, assim que estes lugares são obtidos, o radical torna-se “centrista” e pragmaticamente escolhe a sobrevivência dentro das regras emanadas do topo. É consensual que é bom manter a cabeça agarrada ao corpo, algo que é comummente valorizado, bem acima da integridade, princípios e valores, ética ou moralidade.. 


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