O Medo



O COVID, seja por uma ou outra razão, inspira sempre medo. Antes, o medo fazia parte da equação natural da vida e com ele se convivia de forma inevitável. A morte, logo ao virar da esquina, sempre a reboque da peste ou da guerra e, claro, da doença, do acidente, do azar que persegue e esconde-se à espreita, nunca se escondia, pelo contrário, de forma constante nos revelava a vida tal como ela é: com a fragilidade que evidentemente tem - e continua a ter.

Ao mesmo tempo, a realidade pré-urbana mostrava o ciclo natural da vida: tudo nasce, cresce, decai e morre. Incluindo nós. Hoje, essa realidade está escondida por detrás da constância que a cidade oferece. A única variável que apoquenta o homem citadino é, quiçá, o tempo e, mesmo essa, à medida que a vida se limita à muralha do centro comercial climatizado, vai passando cada vez mais despercebida.

Em cima de tudo isto, a religião. Antes do advento do secularismo modernista, a fragilidade material da vida de cada um era fortificada pela componente espiritual do mundo. Um mundo emanado de Deus, com um propósito e um destino que apenas Ele reconhecia, mas um propósito e um destino que nos incluíam, logo que nos oferecia sentido e significado para a nossa vida. Simultaneamente, a vida moral estava organizada e a comunidade como um todo partilhava um telos, uma estrutura, um propósito.

O medo dissipava-se assim de diversas formas: primeiro, por ser familiar, depois por ser natural e, finalmente, por não colocar em causa o que realmente importava: a Salvação - aliás, muito pelo contrário. Em suma, o medo integrava-se, aceitava-se.

Contudo, com o advento da modernidade e a respectiva secularização, bem como o paralelo afastamento do Homo Sapiens face à condição em que vivia desde muito antes da sua ascensão à consciência - no mundo natural -, de tudo o Homem se separou: da normalidade, da Natureza e do Divino que a tudo dava significado. Como se vê, as condições fundamentais de integração e aceitação do medo, em duzentos ou trezentos anos, dissiparam-se.

Ao mesmo tempo, o triunfo da Nova Religião - o racionalismo científico - embutiu a ilusão de controlo sobre o mundo, um controlo absoluto, ou quase absoluto, no centro comercial, mas muito menos evidente no campo de cultivo. Não obstante, a técnica da ciência permitiu um aumento exponencial do que controlamos no mundo. Daí ao deslumbre foi um salto, em particular dentro daqueles, cada vez mais numerosos, que do mundo nada conhecem para lá das ameias do castelo citadino.

Logo da Nova Religião nasceu o Novo Paraíso Material, o que substituiu o espiritual. Aquele, o Novo, agora revelado no “aqui e agora” da vida terrena e material, consubstancia-se fundamentalmente na superação da doença e da morte, na abastança, na “felicidade”, mas tudo resumido num único combate: a recusa do sofrimento.

Aliás, ao sofrimento prefere-se inclusive a morte, tal como a crescente aceitação da eutanásia o confirma. Do mesmo modo, mas noutra perspectiva, também o aborto exemplifica a mesma opção: onde se imagina sofrimento, ou incomodo, derivado de uma futura vida mais vale acabar-se com esta última. Sublima-se a morte, inclusive a dos outros, como uma inevitabilidade, na rejeição do sofrimento. Se está a sofrer, o melhor é abatê-lo: o que servia para os animais, serve agora para nós também. Resta saber se, com tudo isto, da antropomorfização infantil dos animais não será o processo igualitário Homem - Besta precisamente  o inverso do que se imagina.

A morte evita-se, atrasa-se, é certo, mas acima de tudo esconde-se: por detrás do botox, dos lares onde largamos os velhos - bem representados inconscientemente, aliás, no fascínio contemporâneo com os zombies que já mais mortos que vivos nos ameaçam com a possibilidade de vir a ser como eles - onde ninguém os quer ver e por debaixo de um culto idiota da juventude, juventude a qual é estupidamente idolatrada apesar da sua ignorância, exactamente a mesma que se revela no ostracismo decretado a quem, apesar das rugas e da degenerescência, até teria alguma sabedoria para nos oferecer.

Na separação face ao ciclo da vida, no dia a dia contemporâneo sobra agora apenas uma amálgama temporal de dias, sempre repetitivos, mecânicos, inexpressivos, em tudo iguais, vazios de conteúdo ou especial significado que não um ganho material, uma conquista vã, quiçá uma superação face ao vizinho com quem, ao invés de um mundo partilhado, apenas se concorre - seja pela promoção, seja pelo lugar de estacionamento à porta de casa.

Na queda do Divino sobrou-nos a mesquinhez materialista  do trivial. Mas não só. Porque o medo, esse medo primordial derivado da perene caducidade humana, não desapareceu, apenas se escondeu. E é esse medo agora que aparece junto com o COVID - a peste, a doença, o caos derivado da falta de controlo, a morte, pior: o sofrimento.

Antes, o COVID seria encarado com a naturalidade da vida agreste, difícil, a que o mundo nos condena. Mas hoje, na sociedade pós-moderna, o COVID representa um sobressalto não contemplado. O desconhecido incontrolável, pois claro. Pior, um caos associado a um sofrimento atroz: agonia, asfixia, sufocação, pulmões inundados, o Inferno, o calvário.

Subitamente, os centros comerciais fecharam, a climatização afinal até transporta a peçonha, e o medo revelou-se com a súbita necessidade do Homem em quarentena ter que enfrentar o espelho e nele reconhecer a sua própria debilidade. Hoje, sozinhos, isolados e quarentinados, ao experimentar a angústia que o medo nos imprime talvez seja bom lembrar que outros tempos houve em que estávamos melhor preparados para enfrentar o medo. Não estávamos sós no mundo, não estávamos largados sem sentido nem isolados numa bolha de pretensa segurança à espera do espigão que a furasse. O espigão é hoje o COVID. Amanhã será outro porque a vida, e o mundo, não param nem dependem de nós.

Por isso, antes de deitarmos fora o nosso último resquício de liberdade em nome de uma pretensa segurança prometida pelo colectivo estatal, convém lembrarmos que contra o medo a solução não é nem nunca poderá ser uma maior separação e isolamento face ao mundo. No final desse caminho que nos vendem como salvação apenas se encontra a solidão e o desespero próprios dos prisioneiros - mesmo que voluntários -, uma solidão e um desespero ainda maiores do que aqueles que vivemos hoje.

Contra o medo só há uma solução: a coragem.

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