Decretar a morte do "Liberalismo" é manifestamente exagerado - parte II (mais uma resposta)


[Esta é a resposta ao post do João Pereira da Silva "Concretização ou doutrina?"]

João, agradeço a tua resposta que li com particular atenção dado que ficaram dúvidas sobre o meu entendimento ao teu post inicial. Dessa forma fui reler as nossas missivas digitais que sintetizo desta forma:

1) O teu post inicial vaticina o fim do “liberalismo” em Portugal atribuindo esse facto à IL ter pedido a intervenção estatal nesta crise do covid-19, rompendo com os princípios liberais;

2) Respondi-te achando excessiva essa afirmação por duas ordens de razões: a) O liberalismo é teoricamente vasto e heterogéneo e o pedido da IL de apelo à intervenção do estado, numa situação de excepção como esta, como garante da segurança de todos tem respaldo na teoria Liberal b) o liberalismo em que te revés não é aquele que a IL segue e, concordando com a legitimidade de ambas as posições, tua e da IL, recomendei-te que te tornasses agente activo na IL, maneira que entendo como única para a influenciares para um caminho mais próximo das tuas ideias;

3) Na tua resposta afirmas que - para além de eu estar errado ( ?! ) e tu perfeitamente alinhado com a doutrina liberal - a IL apoiou medidas que deturpam os princípios liberais, que a liberdade deve ser dada a todos os que queiram usar em qualquer contexto e que o controle de informação estatal deturpa a avaliação da situação. Em síntese, a posição de um liberal e de um partido liberal deveria se sempre a recusa da colaboração com o estado, em essência controlado por socialistas e manipuladores. 

Penso que sintetizei o ponto em que estamos. Vamos então partir para o meu contributo para esta discussão.

Não encontrei nesta tua resposta elementos verdadeiramente novos ou dissonantes em relação ao teu primeiro post de onde concluo que percebi perfeitamente o que querias dizer. Desta forma, também os meus argumentos terão de andar à volta do que já te disse previamente, se bem que irei introduzir alguns elementos novos

Há liberalismo para além dos direitos naturais.  

Ludwig Von Mises, um grande liberal por quem tenho admiração, um liberal de referência, achava que os direitos naturais como os entendidos por Locke e os iluministas do sec XVIII eram algo demasiadamente metafisico para que assentássemos no sec. XX as nossas fundações ideológicas / liberais. Para Mises, o liberalismo tem quatro elementos base, estruturantes de todo o corpo de pensamento liberal: 

Defesa das Liberdades Individuais
Defesa do Comércio
Defesa da Propriedade Privada
Defesa da Paz

Mises não precisava dos direitos naturais para derivar estes elementos. Utilitarista como era entendia que estes direitos causavam a maior prosperidade e felicidade ao maior número possível de pessoas o que legitimava a sua utilização. Qual é para LvMises o papel do Estado? Vou citar “O Liberalismo não é anarquismo, nem tem absolutamente nada a ver com anarquismo. O liberal entende claramente que, sem recorrer à compulsão, a existência da sociedade estaria ameaçada e que, por detrás das regras de conduta cuja observância é necessária para assegurar a cooperação humana pacífica, deve estar a ameaça da força dado que a sociedade não deve ficar continuamente à mercê de qualquer um dos seus membros. É preciso ter meios para obrigar a(s) pessoa(s) que não respeitam a vida, a saúde, a liberdade pessoal ou a propriedade privada dos outros a aceitar as regras da vida em sociedade. Esta é a função que a doutrina liberal atribui ao Estado: a protecção da propriedade, da liberdade e da paz”. LvMises - Liberalism In The Classical Tradition [ pp 37 ]

Bom, um homem como LvMises não será um perigoso socialista não é ! 

O que Mises diz, [NOTA: o texto que referes do Prof .Rui Albuquerque diz isso mesmo também, por exemplo “Foram os liberais que inventaram o estado contemporâneo, o que se sustenta sobre os pilares da lei e da constituição,[…] Porque, segundo ele, só uma entidade que lhes fosse superior poderia assegurar os seus direitos fundamentais à vida, à propriedade e à segurança. Em suma, a liberdade.”, ] é que o Estado tem um papel de defesa das liberdades e que essa defesa é o garante da sua existência, pois de outra forma não poderíamos desfrutar delas plenamente. Podemos e devemos perceber o seu poder, desconfiar do seu uso e acções. Temos de estar em permanente desconfiança perante a suas capacidades coercivas, a sua maquinaria da força mas temos de o entender como um garante último. Não me choca assim que a IL apele ao estado, ainda mais numa situação de total excepcionalidade, nunca vivida pela nossa geração e onde, por um motivo de precaução extrema e da defesa da vida em sociedade, perante este desconhecido, temos de ter o maior cuidado. 

Fará então sentido que desfrutes desta tua liberdade individual de forma que dizes, isto é numa situação de excepção onde devido a particularidade da crise, as tuas acções podem por em causa o direito à vida do outro? não estará, na situação presente, o teu direito à liberdade a colidir com o direito à liberdade do outro? Penso que sim, mas também entendo que tens a liberdade de romper essa quarentena, de agir em forma de desobediência civil. Terás é que garantidamente estar preparado para as suas consequências sociais. Essa liberdade só é valida se fores responsável pelos teus actos. 

Este texto já vai longo. Gostaria de abordar a questão da informação, do controle da mesma pelo estado e de como esta sociedade no sec. XXI é ao mesmo tempo a que maior potencial tem de opressão e, ao mesmo tempo de liberdade. Uma contradição? Nem por isso… guardarei para outro post esta minha reflexão. 

Concluo. O liberalismo é amplo e heterogéneo. Nele encontramos desde os que defendem a liberdade de forma negativa aos que a defendem de forma positiva. Podemos aderir mais a uns que outros, podemos ser críticos radicais de uns e menos de outros, mas somos todos liberais desde que entendamos que a liberdade individual e a propriedade privada, são os alicerces de uma filosofia politica onde o individuo está no centro de toda a acção num mundo mais justo e melhor para todos.

Um partido político liberal terá necessariamente que fazer enormes concessões e criar desaguisados entre os seus membros pela natureza da doutrina liberal de desconfiança do poder. Cabe a cada um de nós contribuir para que ele rume no sentido do porto que queremos. Ou então ficar de fora a ver navio partir para aventura que é ajudar a construir o liberalismo em Portugal.  Ambas as posições são perfeitamente legitimas.

Um forte abraço deste teu amigo,

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