Conhecimento Absoluto - um esclarecimento
Gostaria de apresentar uma nota ao artigo
do Nuno Lebreiro, publicado aqui no Contracorrente, sobre a ligação do chamado
"conhecimento absoluto" à pretensão da governação absoluta, onde
invoca, a este propósito, os nomes de Kant e Hegel.
Podemos ver o projeto de Kant como, em
último grau, o de provar a existência de Deus. Kant afirma que o nosso “entendimento”
só pode perceber objetos sensoriais no
espaço e tempo; mas a “razão” (uma faculdade intelectualmente mais geral que o
entendimento) impele-nos a pensar o incondicionado, isto é, leva-nos sempre a
pensar qual a causa de tudo o que existe até chegarmos à ideia de um
"objeto" que será a causa primeira do mundo mas que, por sua vez, não
terá, ele próprio, nenhuma causa. Assim, segundo Kant, não é possível provar a
existência do objeto Deus, ou a finitude/infinitude do mundo, ou a imortalidade
da alma, já que estes objetos não podem ser conhecidos constitutivamente,
isto é, não podem ser percebidos enquanto representações dos nossos sentidos no
espaço e no tempo, ao contrário dos objetos da nossa experiência quotidiana ou
das ciências matemáticas e naturais.
Mas Kant não desiste de tentar provar a
existência de Deus. No seu livro "Crítica da Razão Prática", ele
sugere que a existência factual universal do chamado "imperativo
moral" (ou, "lei moral") requer que postulemos a existência de
Deus para que essa lei faça sentido. A lei moral diz-nos que devemos agir em
qualquer situação de modo a que a nossa ação possa ser considerada uma lei
universal, isto é, a minha ação será moralmente correta se eu agir do mesmo
modo que eu exigiria que os outros agissem numa mesma situação. Mas,
infelizmente, de acordo com Kant, nada garante que o cumprimento da lei moral
nos traga, neste mundo, a felicidade associada à virtude de carácter, o que ele
chama de “bem supremo”, o "summum bonum". Contudo, nada existe nas leis
da natureza que impeça a possibilidade da realização deste bem supremo (a
felicidade ligada a uma vida virtuosa). Assim, Kant argumenta que o facto de a
lei moral estar "implantada" na nossa consciência - 'um facto da
razão' - deve ser um indicador que o bem supremo é possível. Como nada garante
que ele se realize neste mundo, a existência de Deus e da imortalidade da alma
devem ser 'postulados'. A existência destes dois objetos (Deus e alma) é,
assim, pressentida, digamos, e não representada de uma forma evidente
para os sentidos, como o são, por exemplo, a figura de uma pessoa ou de uma
cadeira. [Nota: o pensamento de Kant mais tarde evoluiu no sentido de deixar
cair o postulado da imortalidade da alma].
Existe assim em Kant a dicotomia entre o
conhecimento que é dado pelo entendimento e o conhecimento que é dado
pela razão - o primeiro possibilita um conhecimento concreto que é
facilmente representável pelos nossos cinco sentidos mas que não é capaz de
conceber realidades supra-sensoriais; o segundo consegue pensar objetos que
estão para além do âmbito dos cinco sentidos mas não é capaz de representar
estes objetos do conhecimento numa forma que seja claramente percetível para
esses mesmo cinco sentidos.
Hegel, por sua vez, tenta ultrapassar esta dicotomia kantiana do
conhecimento. O ponto de partida da sua filosofia é de que o princípio de toda
a realidade é a mente, o espírito, o logos, a Ideia. A natureza, o mundo
físico, é 'apenas' a individuação, a externalização, a objetificação do logos
(que pode ser entendido como Deus num sentido geral). Hegel considera a arte, a
religião e a filosofia como as três formas de elevação do espírito humano em
direção à Ideia absoluta, mas distingue o conhecimento "pictórico" da
arte e da religião do conhecimento filosófico.
A
arte usa imagens e outras representações apelativas para os sentidos, ao passo
que a religião usa também alegorias e metáforas. A Bíblia, por exemplo,
é uma fusão de poesia e teologia revelada. Já a filosofia percebe
os objetos enquanto pensamento puro - um exemplo que me ocorre agora de repente: enquanto algumas
filosofias dizem que existe uma hierarquia ascendente do Ser desde os
microrganismos, passando pelas plantas e animais até os humanos, mas que é
possível que o Ser continue ascendentemente em manifestações que são
impercetíveis aos nossos sentidos, algumas religiões estipulam a existência de
anjos, seres alados com figura humana e só revelados a algumas pessoas.
O diálogo entre a Filosofia e as Ciências Aplicadas
Mas
o que é isto de a filosofia perceber a realidade última como pensamento puro?
Recorro a um exemplo:
Pensemos num automóvel. O que significa conhecer um automóvel?
Significa conhecer todas as peças de que é feito? Evidentemente que não. Mesmo
que eu tenha um inventário de todas as peças que são necessárias para o construir
eu tenho que saber como ligar essas peças em concreto, tenho que saber o papel
de cada uma delas e a relação entre elas no funcionamento do automóvel. ‘Conhecer’
significa então a "ideia" que permite construir um automóvel. Por sua
vez, cada peça do automóvel tem também que ser construída e, para isso, é
preciso uma ideia que a tenha concebido. Neste sentido, ‘conhecer’ um objeto
significa conhecer a ideia que possibilita a existência desse objeto. Deste
modo, como todos os objetos são constituídos por outros objetos, o que está por
detrás de toda a realidade material são ideias, ou uma grande Ideia. Repare-se
que mesmo nas ciências naturais, que apenas lidam com objetos físicos,
"conhecer" significa idealmente descobrir as "leis da natureza".
Mas estas leis são objetos puramente mentais, são "ideias". As
ciências naturais não ficam satisfeitas em descobrir que um evento X é a causa
de um evento Y; mas procuram perceber porquê Y sucede a X. Para
responder à questão de porque é que uma maçã caía em direção à Terra e não em
direção ao espaço atmosférico, Newton postulou a existência de uma força de
atração a que chamou "gravidade" e, posteriormente, calculou a
magnitude dessa força. Repare-se que o que explica, neste caso, a queda dos
objetos na direção da Terra é a lei da atração gravitacional. Esta lei não é um
objeto concreto, mas uma "ideia" que se aplica a todos os objetos do
universo. Mais tarde, Einstein elaborou a teoria de que a gravidade não é uma força,
mas antes uma curvatura do espaço - todos os objetos "inclinam" o
espaço na sua direção atraindo assim os objetos em redor. Mais uma vez a
gravidade não é um objeto, mas sim uma lei expressa por uma ideia.
Por
sua vez, o conceito de gravidade é ainda alicerçado num conceito mais puro - um
conceito metafísico - o de que todos os fenómenos têm uma causa. Assim, as leis
da física assentam ainda em leis mais primitivas, mais
gerais, hierarquicamente mais altas. O conhecimento destas leis gerais do
mundo, aquilo a que Hegel chama a Ideia, e que tem um paralelo com o conceito
de Deus, é o que ele chama “conhecimento absoluto”. Note-se que não é o
conhecimento de todos os factos do mundo, mas apenas das leis metafísicas que o
governam. É como a diferença entre conhecer o conceito de zebra e conhecer
todas as zebras. O primeiro não implica o segundo.
O “conhecimento absoluto” hegeliano é perfeitamente compatível, por exemplo, com a teoria falsificacionista de Karl Popper, que afirma que todas as teorias científicas devem ser testáveis de modo a poderem ser refutadas ou confirmadas, mas que nunca é possível afirmar com certeza que nunca irão ser refutadas no futuro - basta falharem um teste. (O que, a acontecer, não torna a teoria inútil mas apenas com um âmbito explicativo menor do que o que se pensava inicialmente) A busca pelo conhecimento das leis metafísicas serve, assim, como pano de fundo e inspiração para a elaboração de teorias científicas e estas, por sua vez, servem também para ajustar, redefinir e inspirar a nossa visão filosófica, integradora, do mundo.
O “conhecimento absoluto” hegeliano é perfeitamente compatível, por exemplo, com a teoria falsificacionista de Karl Popper, que afirma que todas as teorias científicas devem ser testáveis de modo a poderem ser refutadas ou confirmadas, mas que nunca é possível afirmar com certeza que nunca irão ser refutadas no futuro - basta falharem um teste. (O que, a acontecer, não torna a teoria inútil mas apenas com um âmbito explicativo menor do que o que se pensava inicialmente) A busca pelo conhecimento das leis metafísicas serve, assim, como pano de fundo e inspiração para a elaboração de teorias científicas e estas, por sua vez, servem também para ajustar, redefinir e inspirar a nossa visão filosófica, integradora, do mundo.
Para Hegel, portanto, a distinção de Kant entre o que podemos conhecer
pelos sentidos e o que podemos meramente pressentir pela razão não faz muito sentido.
Isto, porque todo o conhecimento é um. "Conhecimento absoluto" para
Hegel significa esta realização de que tudo no mundo é fruto de uma mesma Ideia
e que conhecer o mundo é conhecer a lógica da Ideia, o Logos.
"Conhecimento absoluto" não significa para Hegel, evidentemente, o
conhecimento total de todos os factos do mundo; um inventário de todos os
objetos e leis da natureza e da sociedade humana. Significa antes a procura dos
princípios metafísicos que subjazem ao conhecimento da natureza e do Homem
alcançado nas ciências aplicadas; a tentativa de descoberta da lógica que
reside na Ideia absoluta. É, assim, a afirmação da possibilidade do conhecimento
total, mas apenas em termos assintóticos - a possibilidade de um conhecimento
cumulativo do mundo como um ideal a ser realizado progressivamente e não como
algo que está aí e para o qual basta olhar para apanhar.
Sobre o "Só Sei Que Nada Sei"
Esta expressão de terna humildade do filósofo grego Sócrates não pode
ser, evidentemente, levada à letra e deve ser colocada no seu contexto. É óbvio
que, em termos práticos, e até puramente científicos, a humanidade sabe imensas
coisas. Sabe muito mais do que sabia há 100 anos e há 100 anos também já sabia
muito mais do que os seus antepassados e por aí fora. Se compararmos o que
sabemos agora, em termos científicos e tecnológicos, com o que sabíamos há umas
centenas de anos a diferença é abissal, gigantesca. Não me parece necessário
expandir mais este ponto de tão óbvio que é. Mesmo no campo das ciências
sociais, como é o caso da Economia, temos hoje um conhecimento sólido do
funcionamento de uma economia de mercado e quais as consequências do
intervencionismo autoritário no mesmo. Se lermos um texto de economia de Aristóteles
ou de São Tomás de Aquino, por exemplo, somos confrontados com uma
confrangedora infantilidade mental nessa área que contrasta com os textos
profundamente inteligentes que estes autores escreveram noutras áreas. A
Economia é hoje uma ciência muita sólida graças ao conjunto de proposições
sintéticas a priori (usando a terminologia kantiana) que construiu nos últimos
250 anos, mas é eternamente bombardeada por insiders e outsiders
que promovem agendas intervencionistas ou monopolistas em benefício próprio ou
de quem lhes paga o ordenado. Porém, os textos que ensinam as verdades
imutáveis da Economia enquanto ciência a priori continuam hoje tão válidos como
há 50 ou 100 anos atrás; é preciso é saber onde estão. O resto é apenas
barulho, poeira que acaba sendo varrida pelo tempo. Do total da investigação
científica que se faz hoje na área da teoria económica diria que a maior parte
não serve para nada a não ser para encher os jornais e revistas académicas com
"publicações" que são exigidas pelas universidades aos seus
professores. Isto quer dizer que continua a existir quem faça boa economia,
relevante, mas é uma minoria. A maioria é apenas uma "indústria de papers"
que se alimenta a si mesma. Também, verdade seja dita, que, graças ao caráter a
priori da ciência económica, praticamente tudo o que havia de interessante para
dizer já foi dito.
Mas, voltando ao "Só sei que nada sei": esta expressão só
pode ser entendida num quadro de conhecimento total, isto é: "Só sei que
quando quero explicar a totalidade dos fenómenos presentes num
acontecimento não o consigo fazer". Dou um exemplo simples. Há semanas o
preço do petróleo subiu devido a um ataque aéreo à Arábia Saudita. Porque é que
o petróleo subiu? Porque teme-se que a oferta de petróleo diminua. Porquê?
Porque teme-se que a Arábia Saudita entre em guerra e diminua a sua produção de
petróleo. Mas porque é que a Arábia Saudita foi atacada e por quem? Mas porque
é que a Arábia saudita não se entende com o Irão? Mas porque é que há correntes
discordantes no islamismo? Mas porque é estes países são muçulmanos? Mas porque
é que Maomé teve tanto impacto? E por aí fora. Quer dizer, se quisermos saber
exaustivamente todas as condições explicativas de um certo evento
entramos numa cadeia de causas e efeitos espácio-temporais virtualmente
infinita, o que torna impossível conhecer todas as causas de um evento.
Daí, em economia, usar-se a famosa condição "ceteris paribus" (quer
dizer, "supondo o resto constante") sem a qual seria impossível
chegar a qualquer resultado prático nesta ciência. De um modo pragmático, no
fim do dia, o que nos importa são explicações que funcionem em termos práticos
e não explicações que nos tracem a cadeia de causas e efeitos desde o big
bang até hoje. E, neste sentido, é indiscutível que o conhecimento objetivo
é uma realidade.
O Neo-Marxismo e o "Discurso Hegemónico"
O Nuno Lebreiro alerta para os perigos totalitários da pretensão do
"conhecimento absoluto" (que, como disse atrás, prefiro chamar de
"conhecimento total"). Neste ponto concordo com ele e basta lembrar o
debate nos anos 30 do século passado entre Hayek e Mises, por um lado, e Oskar
Lange et al (que foram levados a sério) do outro lado, sobre o
argumento da possibilidade da eficiência do socialismo com base na posse de um
hipotético conhecimento total (ainda por cima subjetivo e descentralizado) por
parte dos planeadores centrais.
Mas, ao invés, a negação da possibilidade de conhecimento objetivo é
também um perigo. E, ainda por cima, está na base de agendas neomarxistas de
muitos justiceiros sociais e partidos de extrema-esquerda. Não é difícil ver
que o "Só sei que nada sei" leva facilmente ao relativismo
epistemológico e moral neomarxista, que afirma que não existe conhecimento verdadeiro,
mas apenas a imposição de pontos de vista baseada nas relações sociais de poder
onde a "classe dominante" impinge o seu "discurso
hegemónico" às classes desfavorecidas no sentido de perpetuar o seu poder.
O objetivo dos neomarxistas é, assim, conquistar o poder para impor a sua
"verdade". Note-se que isto é a negação de qualquer conceito de
verdade objetiva e tão só a busca desenfreada pelo poder em benefício próprio e
dos seus acólitos.
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