As Palavras


Uma pessoa entra numa livraria ou biblioteca e depara-se com milhares de livros, biliões de palavras. Que verdade há naquilo tudo? Os livros são como as pessoas - há os mais e menos honestos, os moralistas e os libertinos, extrovertidos e introvertidos, há os manhosos, oportunistas, aldrabões e os cheios de ódio; mas há também os sinceros e os cheios de amor; há livros cultos e livros incultos.

Todos os grandes desastres sociais foram justificados antes e depois em palavras impressas em livros; mas as grandes mensagens de amor também. O ponto é que tudo pode ser dito em palavras e frases que aparentam ter sentido, lógica. A robustez lógica de um livro depende do leitor que o lê. Há os que engolem tudo; aqueles que negam tudo...e os outros.

A arte enganadora e encantatória das palavras foi percebida logo desde cedo, claro. O antigo grego Zenão, por exemplo, provou por palavras, há 2300 anos atrás, que o magnífico corredor Aquiles nunca conseguiria sequer alcançar uma tartaruga numa corrida entre os dois se esta partisse à frente. Isto porque quando Aquiles alcança o ponto em que estava a tartaruga, ela (porque não está parada) já andou uma certa distância para a frente; sempre que Aquiles está prestes a alcançá-la ela já se moveu mais um pouco. Ora, isto parece ser absolutamente irrefutável. Contudo, qualquer pessoa percebe que Aquiles, desde que corra a uma velocidade superior à da Tartaruga, vai acabar não só por alcançá-la como ultrapassá-la.

Este paradoxo de Zenão ilustra a capacidade de sermos enganados pelas palavras mesmo quando estas negam aquilo que é óbvio ou afirmam o que é impossível.

"Paroles, paroles". Os livros continuam a ter uma aura de respeitabilidade ainda hoje, apesar de todas as enormidades que veicularam ao longo da história da humanidade. As bibliotecas avantajadas são mostradas com a vaidade de quem equaciona "ler muito" com ter muito conhecimento. É óbvio que uma pessoa pode ter uma biblioteca de dezenas de milhares de livros cheios de palermices. Mas como provar isso? Como diz o outro, "tudo é relativo." Além disso não deve haver nenhum livro que não diga uma data de coisas certas mesmo que ostente um rol apreciável de ignomínias mentais e que na sua essência não resista a uma análise rigorosa. Mas, como dizia o Fernando Pessoa, nunca se pode ter razão, nem num restaurante - nem sequer para pedir uma dobrada (que era à moda do Porto e nunca se come fria).

As palavras são realmente essenciais para pensarmos. Servem para registar e fixar o pensamento, permitindo-o assim avançar. As palavras dão mais liberdade, mais âmbito ao pensamento. Elas não têm culpa de serem muitas vezes o instrumento do mau pensar. Desconfio sempre daqueles que dizem "não há palavras para descrever" ou "não consigo explicar por palavras". Certo que a maior parte das palavras não aponta para objetos concretos, mas antes para conceitos menos ou mais complexos. Mas as palavras são prenhes de significado e estimulam a compreensão do leitor. Não subestimemos o leitor. Muitas vezes ele até percebe mais do que aquilo que vai escrito (outras vezes, menos).

Regresso e acabo no nosso mestre maior da palavra:

"A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma[...]" (in O Livro do Desassossego) Está tudo dito.

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