Do Idealismo



Philip K. Dick no seu The Man in the High Castle a determinada altura caracteriza os Nazis - que na sua distopia controlavam o mundo - como loucos que perseguiam o ideal. "A sua visão é cósmica", escreveu Dick, "nem um homem aqui ou uma criança ali, mas uma abstracção". Para ele, os Nazis não procuravam ser homens honrados, mas, mais que isso, procuravam a honra ela própria. O ideal da honra, tal como o da raça e o da pátria.

A essa procura do ideal Dick chamava a tal 'visão cósmica': aquela que está para lá das minudências do dia-a-dia da subjectividade humana e que almeja a conquista do divino universal. Não admira, portanto, a matança que se lhes seguiu: quanto vale afinal a vida de um homem para quem apenas julga vislumbrar o universal que o transcende? Mais: que vida mais nobre poderá haver do que aquela daquele que se guia pela 'visão cósmica'?

E assim, de uma mesma penada, primeiro, nos colocamos no pedestal máximo de quem procura a pureza verdadeira tal como, depois, se desprezam todos os outros que o não fazem. Eu, que sou bom e virtuoso, sigo o ideal da verdade; tu que não o fazes és mau e, por essa razão, menos do que eu. É esta a semente perniciosa do idealismo tornado absolutismo moral: em nome de um ideal sacrificamos o real no altar da nossa própria virtude.

Ora, é esta procura do ideal que está de volta - e com toda a força. Mas de tanto se procurar o ideal, de tanto se procurar viver na virtude universal, acaba-se no ridículo de esquecer a humilde condição humana que, por mais que tentemos escapar rumo ao ideal, teima em não nos largar. Assim chegamos a este freak show mediático onde a cada pedra em que tropeçamos descobrirmos um fervoroso combatente pelo seu ideal.

Senão repare-se: que é a agenda identitária senão o assumir que os ideais da raça, do sexo e das etnias, na sua pureza conceptual, passam a definir a bondade e a maldade dos indivíduos que as partilham? Ou, noutro exemplo, que outra nome se pode dar aos lunáticos que em nome de um ideal utópico sobre a Natureza e os Animais esquecem a própria condição animal e natural do Homem, um ser que esses iluminados imaginam agora poder - pior ainda: dever - pairar no abstracto universal, ou seja, na própria dimensão do ideal, acima de tudo o resto, tão acima, e tão divino, que se permite a sobreviver sem participar do jogo da Natureza, ou seja: a viver sem matar?

Quem procura o ideal pauta a sua acção em nome desse ideal. Um ideal, precisamente por ser ideal, é simultaneamente a fonte de acção e o objectivo dessa mesma acção. Tudo tende, e tudo emana, do ideal. Assim, naturalmente, tudo se deve vergar a esse ideal, incluindo a razão, a ciência e o bom-senso. Nem de outra forma poderia ser: para quem persegue o ideal o que conta é o que deve ser, não aquilo que é. Porquê? Porque aquilo que é nunca é o ideal. O ideal, a perfeição, é algo que nos é, pela força da nossa condição, alheio. Logo, a realidade nunca é - por definição - ideal. Assim sendo, àquele que busca o ideal o ponto de partida é sempre a recusa da realidade que em nome de um ideal urge modificar.

À medida que o combate avança, um combate que é forçosamente uma luta contra a realidade em nome de sonhos, somos forçados a negociar. No entanto, a negociação é também ela por definição uma falha para com o ideal que agora se compromete em troca de algo. Assim, o caminho diverge: uns idealistas, fruto da maturidade e do reconhecimento da sua própria imperfeição, comprometem-se, e envolvem-se, com o mundo; outros, na sua infantil e inútil demanda pela perfeição idealista, aprofundam a rejeição do mundo, esse adversário dos seus ideais, incluindo nessa rejeição os moderados que agora se comprometeram, bem como todos aqueles que não partilham do seu ideal.

Mas o ideal é objectivo e os intérpretes, mesmo os mais afoitos, estão condenados à sua própria Humanidade. Ou seja, são eles próprios subjectivos. Daí que o idealismo termina, pois, sempre num conflito permanente sobre qual o verdadeiro idealista, qual a verdadeira interpretação do ideal, quem é o mais perfeito, o mais verdadeiro, numa espiral progressivamente mais insana de conflitos entre grupos e grupinhos, sempre cada vez mais divididos, todos convencidos de que eles é que têm a razão do seu lado.

O triunfo do idealismo será então uma condenação ao conflito - porque o ideal não se compromete - e à recusa do real - porque o ideal é para se fazer cumprir. Onde o idealismo triunfar a democracia, um regime que vive do compromisso,  não pode subsistir. É aqui que reside a verdadeira essência anti-democrática dos novos movimentos identitários ou "naturalistas" tipo PAN (entre aspas porque de naturais não têm nada). Seguem altos na sua virtude, desprezam os adversários como burros ou malvados e assumem que o objectivo final, mais ou menos disfarçado, é a mudança do mundo. Uma mudança que passa por transformar um mundo em que se vive, pelo menos no Ocidente, como cada qual quer num outro mundo, um mundo ideal, um mundo onde se vive como eles, os virtuosos idealistas, acham que todos devemos viver.

Ao mesmo tempo, tudo cede e se verga ao ideal. Um bom exemplo é a ciência. Há muito que a extrema-esquerda abusa de um discurso económico que apenas engana o incauto, onde nada é coerente e onde os resultados não comprovam as medidas. No entanto, como o objectivo ideal está para lá dessas minudências, em nome do superior ideal os argumentos soçobram e as críticas são combatidas, não com a lógica dos factos empíricos e do melhor conhecimento que se tem mas, pelo contrário, com epítetos de traição, indignidade, malevolência, sempre ad hominem, e sempre em nome da virtude dos combatentes pelo ideal.

Os argumentos económicos da extrema-esquerda não valem por si próprios, pelo contrário, os argumentos são bons porque são deles, e eles, os idealistas, são bons. E são bons porquê? Porque lutam por ideais. O PCP? Luta pela Liberdade. O Bloco? Luta pela Igualdade. O PAN? Por salvar o planeta. Todos eles lutam por desígnios superiores que atestam a inferioridade moral do seus adversários. Numa pescada de rabo na boca, as maiores atrocidades intelectuais e morais se auto-justificam porque, para um idealista, os fins, por serem ideais que são ao mesmo tempo a fonte, o Alfa e o Omega, o princípio e o fim, da sua própria moralidade, terão que necessariamente justificar sempre todos os meios.

Mas o mesmo se passa em todas as áreas: tal como falam de economia sem perceber de economia, e chamam nomes a quem deles discorda, também falam de biologia sem perceber de biologia - que renegam em nome da biologia 'inclusiva' e 'justa' - e apupam com os mesmos epítetos quem deles ousar discordar. Do mesmo modo, falam de história sem saber de história ou, pior, renegando a história que relativizam para enquadrar a sua grande narrativa, votando ao ostracismo todos aqueles que não aceitam como verdade essa mesma narrativa.

O idealismo, com a recusa do real, é a derradeira arrogância dos ignorantes. A última arma de quem se recusa a crescer e a ver o mundo tal como ele é. E como arrogância e ignorância que é, estabelece e dissemina as sementes da violência. Com o virtuosismo auto-congratulatório próprio dos mitómanos, a capacidade de tudo organizar em amigos e inimigos, a recusa do compromisso, do diálogo e do real, tudo isto aliado ainda à simplicidade dos slogans que ao tudo significarem não significam rigorosamente nada ou, pior, justificam tudo e o seu contrário, deste caldo néscio se alimentam os abutres da nossa civilização.

Deste conflito histérico se aproveitam também os poderosos que, ao dividirem para reinar, procuram vender por todos os meios a ideia de que largados a nós mesmos não nos sabemos governar. Afinal, a única coisa que todos estes idealismos têm em comum - como sempre, aliás - é a enorme falácia de que deve ser o Estado a governar-nos a todos.

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