As Sementes do Totalitarismo



Uma das grandes promessas do Iluminismo foi a da libertação das mentes face ao obscurantismo da religião, do misticismo e da superstição. O ponto de partida do Iluminismo, a noção de que o Homem é um ser fundamentalmente racional, assenta, no entanto, primordialmente em dois pressupostos bem antigos que o antecederam: primeiro, que a racionalidade humana tem um substrato de universalidade de onde decorre que algo que seja racionalmente válido para alguém também o deverá ser para outrem. Ou seja, e este é o segundo pressuposto, um postulado racionalmente válido é algo que é por si só verdadeiro. Destes dois pressupostos sai a bendita promessa Iluminista: os homens, porque racionais, tinham acesso directo, por si próprios, à verdade universal racional onde assenta o mundo, uma verdade que alargada das ciências naturais para as morais e políticas libertaria a humanidade das sombras e das ilusões do misticismo, da ignorância e da violência.

A ciência trouxe com ela a riqueza, e com esta veio também a paz e a segurança que o bem-estar social permite, mas também o aumento da esperança média de vida, a diminuição da mortalidade infantil e grandes instrumentos contra a dor e o sofrimento das pessoas. Estas mudanças impuseram-se exponencialmente para evidente confirmação popular: o mundo onde nos deitamos para morrer deixou de ser o mesmo que nos viu nascer. Com o avanço científico veio também o encurtar do mundo, hoje digitalmente nas palmas das nossas mãos; a ciência diminuiu, ou pulverizou até, distâncias, democratizou o acesso à informação, ao ensino, à polis. O Homem, finalmente, conquistou o poder para transformar o mundo e vergá-lo à sua vontade. Assim sendo, os dilemas do mundo que até ao advento da modernidade representavam um mistério insolúvel para quem não acreditasse nos Evangelhos passaram a ter uma promessa material, no aqui e agora da vida terrena, de solução: a seu tempo, a harmonia universal da razão seria traduzida numa resposta definitiva moral para a vida humana. Investigando os comos, através da Scienza Nuova, se chegaria aos porquês. Esta promessa material, alavancada no racionalismo, consubstanciou a grande revolução do Iluminismo.

A seu tempo, a crença na razão acabou por consubstanciar-se na noção de uma religião natural, isto porque à razão atribuía-se um carácter total, universal e verdadeiro - divino, portanto. Entretanto, o sucesso derivado dos avanços tecnológicos que a nova abordagem científica permitiu comprovava esse carácter verdadeiro, e salvífico, da fé racional. Assim, essa promessa de solução do mundo, incluindo o moral, fez o seu caminho: primeiro, confrontou os dogmas de Fé; depois, substituiu-os pela crença na ciência. A sustentar esta crença, a fé iluminada pela Razão, o novo deus do mundo moderno. E não admira: como não crer hoje na promessa que nos trouxe este admirável mundo novo, ainda para mais, um mundo novo que experimentamos aqui e agora, na vida que sabemos que temos, e não apenas numa supersticiosa promessa de um paraíso futuro situado para lá do abismo da morte?

No entanto, porque a Criação permanece dos poucos factos incontornáveis da existência, assumindo-se que essa Criação tem uma causa, mesmo que espontânea, não-premeditada ou sem Providência, e que a essa causa se defina como de carácter divino, porque última e primordial - o Alfa e o Omega -, o papel de Deus manteve-se inalterado com o advento do iluminismo: não se começou logo por recusar o divino, apenas se recusaram as explicações humanas acerca do divino que não derivassem de conhecimento obtido através da técnica da ciência. Porquê? Porque, entendeu-se, para explicar-se convenientemente o mistério da Criação era necessário que se conhecesse a Criação, que se processasse a Criação através do instrumento da razão humana, com o auxílio das novas técnicas. Ou seja, através do estudo da Criação, da Natureza, se chegaria eventualmente ao conhecimento da primeira causa, isto é, de Deus. Hélas, a base da religião natural do iluminismo. Ao contrário do que se possa imaginar, mesmo que o iluminismo visasse extinguir a superstição e as ilusões místicas milenares, o objectivo nunca foi o de matar Deus, muito pelo contrário: o objectivo era descobri-lo, revelá-lo ao mundo através da razão.

Francis Bacon, no seu Novum Organum, em 1620, sintetiza o trabalho a fazer: "substituir os velhos dogmas vazios do passado pelas assinaturas e marcas impostas sobre os trabalhos da Criação tal como encontrados na natureza" (NO I/XXIII). Substituir, repare-se, não destruir: apesar de tudo, algo haveria para manter. No entanto, não obstante, uma forma de conflito decorreu na mesma do arrojo dos novos filósofos: a ciência contra a tradição. Naturalmente, esse conflito começou lentamente, apenas que gradualmente aprofundado, e acelerado, numa relação de directa proporcionalidade com o ideal de progresso material humano que se ia estabelecendo. Aliás, se Newton procurava Deus na ordem universal, Francis Bacon estabelecia para lá do supracitado objectivo  - a substituição da velha ordem por uma nova ciência - também um porquê mais materialista: a descoberta de novos poderes e novas conquistas para a Humanidade, o progresso da Humanidade. Como se sabe, o objetivo de Bacon cumpriu-se - o de Newton não tanto.

Ora, o progresso chegou de facto. Bem como a substituição da ordem antiga pela religião nova, a natural ou científica. Essa religião substituta, no entanto, precisamente por ser uma substituição, assumiu a estrutura da original alavancada no novo evangelho: o método científico. Primeiro, quanto à separação entre os planos divino e material. Aqui, a divisão platónica entre a caverna prisioneira do corpo e a harmonia verdadeira das ideias, também ela já absorvida pelo Cristianismo na dicotomia de Santo Agostinho entre a cidade divina e a terrena, passa na nova religião a consubstanciar-se na distinção, primeiro com Descartes, entre mente e corpo e, mais tarde, com Kant, de forma mais subtil, entre o entendimento e a sensibilidade.

Eventualmente, a razão assumiu gradualmente o papel de um Deus entretanto enfraquecido na abastança do mundo material: a razão, tal como Deus, é perfeita, é infalível, transcende o tempo, a vida e a morte, é imortal ou, mais ainda, é eterna. Nela participamos, tal como os antigos participavam da magia mística do mundo ou, segundo São Tomás, como os homens participavam da ordem divina. Mas, mais que tudo, a razão é boa: ela traz-nos o progresso, a verdade e a abastança.

Da mesma forma, ao contrário do Cristianismo mas tal e qual como no monismo das religiões que não descobriram a secularidade - a Deus o que é de Deus, a César o que é de César, não esqueçamos -, a razão, apesar de nunca convenientemente justificada a supressão do dualismo, passou também a ser total: ela regula o transcendente e o mundo natural, mas regula também os homens e as cidades. E quando não regula deveria regular. Logo, é moral também: a razão revela o Bem ao homem que o deverá seguir. A razão, a luz que ilumina o mundo dos homens, é o farol que guia os homens rumo ao futuro, ao progresso, não apenas material - a abastança -, mas também espiritual - a sabedoria. E se, por um lado, a razão é o farol que liberta da ignorância, por outro, a razão é também o freio que domina o cavalo selvagem que ameaça libertar-se do coração de todos nós. A crença na razão é, portanto, por definição, uma crença totalitária: explica o mundo e o transcendente, rege os corações e as mentes dos homens, bem como organiza a sociedade.

Em suma, a nova ordem racionalista, uma ordem baseada num pressuposto totalitário, substituiu uma ordem - a Cristã - que, mesmo que com muitas dificuldades práticas, pressupunha na sua génese ontológica as vantagens da secularização. Não admira, portanto, que nas sociedades onde o culto do racionalismo se conseguiu impor por completo, com ele veio o totalitarismo político impositor de uma nova ordem social, a regular tudo, incluindo a vida privada, e, com o romper de todas as barreiras sociais e culturais que protegiam a dignidade do indivíduo - até aí entendido como pessoa -, causando milhões de mortes, mortes essas justificadas estatisticamente como meios para se atingir o fim último do Bem supremo: que o paraíso prometido poderia ser atingido no aqui e agora da vida terrena.

Pelo meio, mesmo onde o totalitarismo político não vingou, o racionalismo continuou o seu caminho, não faltando os profetas do mundo novo que anunciam a chegada iminente do tal paraíso terreno, bem como os seus apóstolos, fiéis e diversas profissões de fé - desde comícios a concertos, desde conferências até aos momentos de reflexão diária consubstanciados nos telejornais. A simbologia também faz o seu efeito: desde a bata branca que num anúncio televisivo assegura a "cientificidade", logo a sua qualidade, do produto anunciado até ao discurso - mesmo o não-político - justificado com o chavão "há estudos que dizem" que confere autoridade. Por detrás, sempre a crença na descoberta racional da verdade - da verdade que nos salvará. O novo, porque derivado do progresso científico, só pode ser bom. E tal como Bacon anunciava em 1620, porque os modernos sabem muito mais coisas que os antigos, e os antigos sabiam muito menos coisas que os modernos (NO I/LXXXIV), apesar do interesse histórico, o conhecimento velho é isso mesmo: velho. E, para quem acredita que o novo é bom, o velho só poderá ser mau.

Voltando ao início, aos pressupostos que justificam a crença no racionalismo, e resumindo, a razão permite aceder à verdade universal. Aqui, assume-se como real que existe um padrão universal, um critério infalível, que permite aferir o que é verdadeiro e o que é falso. No entanto, se é verdade que tal critério, mesmo que provisoriamente, até pode ir sendo imaginado no mundo abstracto da lógica e da matemática, não se descortina qualquer evidência empírica - e logo os cientistas que tanto gostam de evidências - de que esse critério, ou padrão, exista no que concerne às escolhas morais dos seres humanos. Assim fosse e bastaria aceder a esse plano para que se chegasse a um acordo sobre o que é correcto fazer em determinada situação. No entanto, assim não é, muito pelo contrário: onde um indivíduo vislumbra uma verdade logo outro descobre uma outra verdade que desmente a anterior - e assim sempre foi desde o início dos tempos.

Como Isaiah Berlin causticamente lembra nas linhas finais do seu From Hope and Fear Set Free, o postulado central da metafísica racionalista - a ideia de que todas as coisas boas e verdadeiras poderão em princípio ser harmonizadas - é uma proposição que "não é evidentemente verdadeira". Muito pelo contrário, será provavelmente "uma das crenças menos plausíveis alguma vez adoptadas por profundos e influentes pensadores". Na verdade, a razão apenas pode ajudar a cumprir aquilo que a vontade escolheu querer fazer cumprir. - ou seja, iluminar o caminho que já escolhemos anteriormente percorrer. E acreditar-se que a razão nos oferecerá esse objectivo último, um objectivo do qual retiramos os sentidos para as nossas vidas, apenas fará com que fiquemos enredados na nossa própria teia, como um cão que roda aos círculos em busca da sua própria cauda. Que esta crença na razão como fonte de conteúdo moral, ou seja, como um critério que nos revela o que devemos perseguir na vida, tenha feito o seu caminho para se tornar, mesmo que apenas de forma implícita, a norma do pensamento contemporâneo apenas revela duas coisas: a fraqueza desse pensamento - e da Academia que o sustenta - bem como o divórcio entre aquilo que os humanos pensam ser a vida e aquilo que a vida de facto é. O divórcio entre o ser humano e o mundo que o rodeia leva a adopção de más ideias, é certo, e daqui à desorientação: com instrumentos de navegação errados o ser humano perde-se num mundo que não compreende, que em alguns casos rejeita, e que o afronta no âmago das suas crenças sobre o que esse mundo deveria ser.

Na realidade, a razão não tem conteúdo moral, é meramente formal. A causalidade lógica da razão é, como é evidente, um instrumento preciosíssimo para se compreenderem as causas das coisas mundanas, os comos da vida. Do mesmo modo, permite-nos identificar obstáculos e aliados, adversários e vantagens. No entanto, não nos diz o que devemos fazer: apenas nos ajuda a obter informação valiosa para que escolhamos com maior confiança rumo aos nossos objectivos, objectivos esses que definem o que é bom e o que é mau para nós. Com objectivos diferentes, a mesma razão sugerirá condutas diferentes perante o mesmo dilema.  Do mesmo modo, a razão não nos diz o que devemos ter como objectivos finais - a não ser os instrumentais que derivam desses - e esses são as coisas que mais desejamos, que mais valorizamos e que nos guiam na nossa vida - os nossos valores. Valores os quais, como Berlin ali em cima lembrou, não são todos harmonizáveis, ou sequer conciliáveis: na maior parte dos casos, a vida esfuma-se por entre as perpétuas escolhas entre o sol na eira ou a chuva no nabal.

Do mesmo modo, a razão não tem respostas para os porquês primordiais, apenas para os comos que nos trouxeram aqui. Deus continua, como sempre, escondido por detrás do manto da subjectividade. No entanto, a triunfante fé na Técnica, ou seja, a fé focada no instrumental, ao arrogar-se de conhecer uma verdade que, afinal, se limita apenas aos meios, deixou-nos desconectados dos fins, dos objectivos. Ao profetizar que a razão nos diria o que o mundo é, porque é que ele existe - mais: que o provaria revelando afinal quem é o Artesão divino -, e ao defraudar tamanha promessa, a religião racionalista apenas aprofundou o materialismo instrumental que, em boa verdade, é o único legado que a crença no racionalismo pode oferecer-nos. Ao defender que a razão e o progresso material nos garantiriam o paraíso aqui e agora, ao desvalorizar o transcendental como uma ilusão mística própria dos ignorantes, ao desprezar as raízes que nos ligam ao velho, ao passado e ao antigo, à nossa identidade, o admirável mundo novo transformou as pessoas em indivíduos, em átomos como diria Charles Taylor, deixando-nos à deriva no desconhecido: afinal a Técnica pode muito mas não acabou com o mistério da morte.

O desígnio da religião científica - o progresso - está aqui, e pode e deve continuar. Mas a riqueza e o poder não trouxeram a felicidade porque a fé do mundo moderno amputou-nos uma parte integrante do ser: aquilo que é limitado pela forma da razão, o sumo, o tutano da vida - a alma.  Podem os humanos ser funcionais na sua especialização, pode ser - como Bacon também profetizou - que seja muito melhor que um saiba muito de uma coisa e outro de outra ao invés de muitos saberem um pouco de tudo. Pode ser verdade que o homem tenha finalmente conquistado o mundo e, se quiser, que em seguida venha a conquistar o sistema solar ou a galáxia.No entanto, de que servirá conquistar o universo inteiro se isso implicar perder a nossa alma? De que servirá dominar o mundo se isso implicar transformarmo-nos em pequenos bits de uma gigantesca máquina computacional que avança sem saber para onde - ou porquê?

Ao mesmo tempo, essa constante labuta na escolha perpétua entre valores que colidem no espaço e no tempo, essa vida que é humana, é a nossa identidade. Negá-la apenas implica negar a nossa própria humanidade. A crença no racionalismo, ao querer fazer dos homens autómatos racionais, rouba-nos a nossa essência: e com ela a possibilidade de completude, sobrando apenas o desnorte, o vazio e a solidão do deserto moral. Afinal, se a razão não oferece nada mais para lá dos meios como poderia ser ela a oferecer-nos os porquês? Estes advêm das nossas escolhas, e estas do confronto da nossa vontade com um mundo - sempre adverso -, e do desejo de nele deixarmos algo que transcenda a nossa transitoriedade. Que legado no mundo deixa um bit que nada fez mais na vida para lá de cumprir com o que a máquina racionalista lhe mandou fazer?

O racionalismo, porque tudo justifica com um transcendente que não existe, acaba por tudo reduzir ao material e ao funcional. Pior, com um pressuposto totalitário a justificá-lo, lança inevitavelmente as sementes do totalitarismo: apenas vai variando qual a particular versão do totalitarismo funcionalista e racionalista que em cada momento vem materializar-se. Hoje, com o triunfo pleno do racionalismo na psique colectiva, brota a aceitação plena do totalitarismo das convicções mais profundas dos elementos menos estabilizados da sociedade - porque menos alicerçados no mundo -, tornando tanto ou mais perigosa a nova versão totalitária do que os totalitarismos do século XX.

Eventualmente, aos historiadores do Século XXII, a crença na virtude suprema que move os guerrilheiros justiceiros da esquerda do politicamente correcto e da justiça social parecerão tão absurdas como para nós nos parecem absurdas as ideias de superioridade racial na Alemanha dos anos 30 do Século XX. No entanto, umas e outras são, na sua essência, exactamente a mesma coisa: a crença num paraíso terrestre que apenas não se cumpre porque o vizinho do lado não o permite. No caso Nazi, porque esse vizinho lhes conspurcava o sangue; no caso dos fascistas do século XXI - os guerrilheiros da justiça social -, porque esse vizinho é demasiado estúpido para compreender a verdade racional que o justiceiro libertador da opressão mundial lhe quer revelar. Não poderia haver melhor exemplo do culto da racionalidade do que este. Não poderia também haver melhor exemplo da mentalidade totalitária do que aqueles que, em nome da liberdade, da verdade e da justiça, se acham no direito de mandar calar, de ofender e de maltratar aqueles com os quais não concordam - ou que os ofendem. Porque eles, os totalitários, são aqueles que fruto da loucura gerada pelo seu divórcio para com a realidade - o mundo -, não sendo capaz de vislumbrar o Outro para lá do seu próprio umbigo, se acham donos da verdade.

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