Materialismo Vs. Liberdade



Um dos chavões que mais faz sucesso no mainstream mediático e político é que a direita é a coutada daqueles obcecados pelos negócios, interesses materiais e os "cifrões" e que a esquerda é o arauto dos sentimentos, das virtudes e dos valores imateriais. Ao mesmo tempo, e daqui decorrente, o socialismo é visto como o sistema que não coloca em primeiro lugar o dinheiro, ou os bens materiais, ao contrário do capitalismo que religiosamente, dizem-nos, adora o dinheiro, a ganância e a inveja. Daí a todo e qualquer adolescente, com ganas de parecer rebelde, e armado com a mesada dos seus pais, ocupar parte do seu tempo a adquirir merchandising estilo Che Guevara para exigir a libertação do jugo fascista do capitalismo são dois passos.

Ora, só o facto de o capitalismo providenciar toda uma infinitude de mercados para produtos anti-capitalismo deveria fornecer uma pista sobre a neutralidade ideológica do próprio capitalismo. Na realidade, o capitalismo, mesmo que assumido como uma forma de organização política, económica e social, não deixa de ser uma forma de organização baseada na ideia de que quanto menos organização central houver melhor funcionará. Assim sendo, não adora ou deixa de adorar o que quer que seja, não veicula mensagens mais ou menos subliminares, não postula verdades, mentiras ou grandes ideias sobre as vidas particulares das pessoas. Essas mensagens, todas essas verdades e mentiras, as ideias, tudo isso é criado e veiculado por pessoas de carne e osso que, fruto da sua liberdade individual, se manifestam no mundo. E se, por um lado, tal como a esquerda afirma, é verdade que esse mundo influencia, formata mesmo, as pessoas para agirem mais desta ou daquela forma, por outro lado, também não deixa de ser igualmente verdadeiro que esse mundo que formata não se consubstancia no capitalismo, ou seja, num sistema neutro, mas sim no conjunto de todas as outras pessoas que os diversos livres mercados permitem que se exprimam e manifestem como muito bem entenderem.

Em boa verdade, o capitalismo não formata ninguém, as pessoas formatam-se umas às outras - e numa cultura de massas, como as ditaduras do Século XX demonstraram, os ícones formatam muito mais eficazmente. Mais, ao contrário do que a esquerda gostaria de admitir, a história demonstra que, quanto mais centralizada é uma determinada cultura, mais violenta - porque necessária à manutenção do sistema - é a formatação dos indivíduos que compõem essa comunidade. Assim sendo, a ideia de que substituir o livre mercado por uma outra forma de organização social e económica vai libertar as pessoas dessa formatação ao mundo social é uma ilusão. A única forma de não formatar um indivíduo ao mundo social que o envolve seria se não houvesse mundo social para acolher esse indivíduo, coisa que no mundo real é, por razões evidentes, uma impossibilidade.

O ser humano afirma-se então com, mas também contra, o colectivo: é desta dinâmica indivíduo-comunidade que ele retira, primeiro, a sua experiência do mundo e, depois, a sua capacidade de superar essa dicotomia e ver para lá do que lhe foi dado. No entanto, esse acto libertador do indivíduo face à comunidade que o recebeu ocorre com a maturidade e, a ocorrer, ocorre qualquer que seja a comunidade, qualquer que seja o sistema social, quaisquer que sejam os valores comunitários. Vir a esquerda vender a ideia de que tem um sistema que nos oferece - simples, fácil, barato, rápido - essa libertação, uma libertação que apenas a angústia individual da maturidade nos pode permitir alcançar, é um logro; pior, com esse logro, essa ilusão de facilidade, vem acoplada, escondida, uma forma de organização social que apenas torna ainda mais difícil a libertação do indivíduo face aos constrangimentos do colectivo e, consequentemente, rumo à sua afirmação como um indivíduo soberano - um indivíduo que vale por si próprio. A noção da esquerda onde se fortalece a liberdade individual fortalecendo através do Estado o colectivo que inapelavelmente sempre oprime o indivíduo é, como deveria ser evidente, uma contradição nos seus próprios termos.

Em boa verdade, a libertação apenas pode ser conquistada, nunca nos é oferecida: se é oferecida então não é libertação, é sujeição a quem nos promete a libertação. A liberdade, aqui entendida como uma capacidade de auto-realização e afirmação plena da vontade criadora do indivíduo, deriva pois de uma dinâmica inescapável, muitas vezes conflituosa, entre o indivíduo e o colectivo, ou seja: é precisamente da opressão do mundo que nasce a reacção emancipadora do indivíduo.

Assim sendo, e desmascarado o logro socialista que promete uma libertação que não pode oferecer, muito pelo contrário: apenas aprofundar, e compreendendo que o sistema de livre mercado - o capitalismo - é na realidade ideologicamente neutro, então onde colocar a obsessão com o consumismo materialista tão cantada à esquerda, e tão cara aos críticos da "sociedade do grande capital"?

É verdade que vivemos tempos de elevado consumismo - provavelmente porque há muita abundância para consumir - e que a sociedade parece apostada num materialismo extremo onde a felicidade e a boa-vida é, de forma muito genérica, equiparada com uma vida materialmente abundante. No entanto, e ao contrário do que a propaganda esquerdista nos quer fazer acreditar, esta obsessão materialista deriva precisamente do triunfo cultural da esquerda no pós-II Guerra Mundial. Quando bem visto, é a esquerda que, na boa tradição marxista, sucessivamente tudo reduz ao material: desde as relações laborais que nada são para lá do salário e do lucro, desde o conceito de justiça social que nada vale para lá de uma igualdade económica, até ao próprio conceito de opressão que, naturalmente, é sempre material também.

O caso da justiça igualitária é paradigmático desta redução: para a esquerda, a justiça cumpre-se garantindo que se estabelece uma igualdade económica na sociedade. Isto, apesar de todas as complexidades de cada ser humano, de todas as suas pequenas particularidades e idiossincrasias, com todas as diferenças que podem derivar, ainda para mais em sociedades numerosas, em infinitos diferentes resultados sociais. Ou seja, para a esquerda, todas as diferenças sociais podem, e devem, no que à justiça diz respeito, ser reduzidas à igualdade material porque a realidade material é a única que lhe interessa. O plano material o único que importa, e nele garantindo igualdade, a sociedade fica, desse modo simplista, resolvida.

Aliás, tanto assim é que aquilo que a esquerda não reduz de imediato ao material fá-lo indirectamente reduzindo a própria concepção do Homem meramente à sua existência material. A recusa do transcendente, daquilo que está para lá da nossa composição atómica e molecular, deixa-nos com indivíduos que nada possuem para lá das suas características físicas. Desse modo, enquanto a sociedade se vai progressivamente resumindo cada vez mais apenas a um conjunto de contratos sociais, também as artes vão focando o olhar no aqui e agora: por exemplo, na arquitectura, com a forma e a estética subjugadas à função. Funcionalismo, consumismo, materialismo: tudo parte desta visão que imagina o Homem como que reduzido à sua dimensão física, material, funcional.

Naturalmente, para uma visão onde apenas o material conta então o conceito de felicidade também terá que ser material também - precisamente aquilo a que assistimos hoje e que tanto enerva os jovens rebeldes. É profundamente irónico, e apenas mais uma evidente prova do enorme logro que é o discurso da esquerda contemporânea, que seja a esquerda materialista, a esquerda que culturalmente é hegemónica, a esquerda que maioritariamente compõe os media, a opinião, o jornalismo, as artes, a esquerda que infiltrou o aparelho de Estado e que tudo regula e quer regular, que seja essa esquerda a falar de alto contra os poderosos do sistema ou contra a cultura consumista: no fundo, tanto num caso como no outro, é contra si própria que fala.

A doença que infectou a sociedade contemporânea é a crença no materialismo: que o Homem se reduz apenas a essa dimensão. Não reduz. E, precisamente porque não se reduz apenas ao material, é agora na nossa sociedade de hoje, na sociedade que usufrui da maior riqueza material da história da humanidade, que se começa a compreender que a riqueza material não resolve todos os problemas da vida. Muito pelo contrário, apesar de o elemento material ser importante, é, de algum modo, no transcendente a esse material que se encontra o sentido e os significados para as nossas vidas. Em particular, é no processo de maturação individual de cada um de nós que essas respostas se encontram, uma maturidade que tarda em aparecer quando se acredita que já se tem tudo aquilo que importa ter: o conforto material. A crença materialista, com a sua ilusão de completude, rouba a procura - e é na procura que se afirma a liberdade. Mais: ao vender a ideia de que essa procura está de algum modo resolvida, porque não está, sobra uma enorme frustração. Frustração que a esquerda, de forma perniciosa, numa pescadinha de rabo na boca, através da propaganda, procura arregimentar contra os fantasmas aos quais atribui as maleitas sociais que ela própria criou.

Fruto do triunfo do materialismo, sem mais nada que resolva a vida para lá de consumo e fantasmas de opressão, no ressentimento do aborrecimento, da angústia e da depressão, mas com a crença de que preenchem os requisitos de felicidade, na incompreensão destes sentimentos contraditórios não explicados pelo mundo que lhes foi vendido, viram-se muitos indivíduos contra si próprios. Um bom exemplo? A crença de que há um verdadeiro género para lá do sexo biológico. Esta crença - é uma crença, que não se duvide - não deixa de ser uma afirmação de que o que é verdadeiro (o género) transcende o material, ou seja: o biológico (o sexo), e que é no alinhar-se com essa verdade transcendente que reside a felicidade e a solução dos seus problemas. O grito pelo transcendente ainda continua presente porque ele não pode deixar de ser sentido. No entanto, a solução mainstream, tal como na economia, não poderia ser mais materialista: altere-se o corpo, reduza-se a solução à superficialidade do aspecto físico que tudo será resolvido. Raramente é o caso, precisamente porque, uma vez que os problemas dos homens não se reduzem ao material, mesmo resolvendo a superfície material das coisas, fica por resolver a profundidade da complexidade humana e dos seus problemas.

Pelo meio, fica a profunda contradição entre aqueles - são muitos - que recusam o transcendente e afirmam apenas o material mas que conseguem simultaneamente imaginar um espaço onde os seres humanos têm uma verdadeira essência de género, uma essência que não pode ser nem transcendente - porque apenas o material existe - nem material - porque é diferente do sexo biológico. No final, atente-se, uma perturbação mental (a disforia de género), é aproveitada como cavalo de batalha de grande parte da esquerda e, apesar de consubstanciar um pressuposto oposto ao que a maioria pretenderia, rapidamente é reduzido, mesmo que através de uma evidente contradição, ao materialismo científico que vem, alegadamente, salvar o Homem através da ciência. Pelo caminho, o Estado avança para dentro da intimidade das pessoas, regulando e deliberando sobre o assunto e forçando crianças que, após todos os inquéritos, as múltiplas sessões de esclarecimento e infindáveis questionários na escola, mais as inúmeras séries, debates e filmes na TV, tenham ganho dúvidas sobre esta matéria - dúvidas que de outra forma provavelmente não teriam - a fazerem operações cosméticas e injeções hormonais, se necessário contra a vontade dos pais. Um crime hediondo contra as crianças, e um atentado calculado contra as famílias, esse bastião protector das pessoas. Que liberdade sobrará numa comunidade onde o Estado pode regular até qual o sexo que as crianças devem "escolher"?

A vida humana é complexa demais para ser reduzida a uma das suas dimensões. A Civilização Ocidental foi bem sucedida porque conseguiu, com grandes esforços, erros e aprendizagens, sacrifícios e sonhos - esforços, erros, aprendizagens, sacrifícios e sonhos de pessoas como nós -, edificar uma sociedade coesa, forte e que garantia mecanismos internos aos indivíduos que a compunham para crescerem e se afirmarem como adultos capazes de, por um lado, defenderem essa sociedade e, por outro, mudarem-na, adaptarem-na, melhorarem-na - e dessa forma defenderem-na também. O estado foi criado para servir essa sociedade. Hoje é o instrumento daqueles que, fruto de uma ideologia infantil e superficial, acreditam poder mudar - pela força - não apenas a sociedade, mas também as pessoas que a compõem. O problema é que no vazio da sua ideologia não têm nada para oferecer para além da destruição que anunciam com o orgulho próprio dos ignorantes.

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