Liberdade Individual e Identidade de Género

Tenho andado calada porque me parece cada vez mais evidente que Portugal, atendendo ao número cada vez maior de pessoas que são demasiado boas para o país em que nasceram (e que, contudo, insistem em cá permanecer, num registo que vagueia entre o pedantismo e a displicência), deveria ser um caso assombroso de sucesso - e não apenas no futebol.
A última luta à Direita - e é bom que assim seja porque da esquerda, entretida entre conveniências e cargos, já não reza a história lusa há muito tempo... - surgiu entre os [ditos] progressistas e os [malditos] conservadores.
(Na prática, há um terceiro grupo, mas já lá chegamos.)
Ao que parece, os primeiros são abertos, tolerantes, magnânimos e cheios de visão.
Por oposição, os segundos têm uma perspectiva restrita, são rígidos, mesquinhos na sua generosidade e cristalizados nas suas [in]ten[ç]sões.
O cerne da questão parece ser aquela coisa sempre dogmaticamente fluída que são "Os Valores", na sua versão mais contemporânea - i.e., a identidade de género.
(Já agora, convém relembrar que a referida identidade é o último grito do "marxismo cultural", que uns desconhecem, outros ignoram ou abominam.)
Portanto, à Direita surgem (de facto) agora três grupos de almas:
I - Os Progressistas, que generosa, afectiva e consensualmente não identificam mal nenhum no estudo da identidade de género;
II - Os Diletantes, que não querem saber porque são superiores a tudo (e, às vezes, até a eles próprios);
III - Os Conservadores, seres malévolos e intolerantes.
(Pela descrição anterior conclui-se imediatamente que, como não sou generosa/afectiva/consensual e porque nunca sou superior à minha própria sombra, eu só posso ser Conservadora.)
Ora, eu não gosto de leituras precipitadas e, para o melhor e para o pior, a minha profissão sempre me obrigou a levar a cabo o "connecting the dots" - ou seja, a integrar os dados numa realidade mais vasta e tentar perceber como é que tudo se interliga.
Tenho 49 anos, sou solteira, heterossexual e sem filhos.
Para muitos, a primeira condição retira-me fascínio, a segunda sublinha-me o desfasamento social, a terceira não fomentará orgias e a quarta garante-me uma velhice solitária.
(Tradução: tinha tudo a ganhar em ser invisível, ficar calada e assobiar para o lado, tanto mais que não serei eu a garantir a sobrevivência da espécie ou da sociedade ocidental.)
Mas este tema é interessante porque se discute o que as novas gerações estudam e que, de alguma maneira, se reflectirá na forma como estarão em sociedade.
Ora, para que novos comportamentos surjam (que é a justificação generosa usada pelos Progressistas e amavelmente aceite por muitos Diletantes) é importante que reflictam uma nova forma de pensar na sociedade portuguesa (pois a actual é tida por muitos como machista face aos direitos das mulheres, preconceituosa relativamente a diferentes orientações sexuais e castradora de novas formas de organização familiar).
O pormenor é que pensar é uma actividade que implica estímulo e prática recorrendo à manipulação (por exemplo, sob a forma de leitura, visionamento de filmes, partilha entre pares) daquele facto notável que é o conhecimento.
Ou seja, pegando no conhecimento e trabalhando-o, é possível estabelecer relações entre dados, fomentar ideias e estabelecer um quadro conceptual próprio, o que se traduzirá em valores que fomentam um percurso de acções e relações de cada indivíduo - ou, como se chama em Democracia, o exercício da Liberdade Individual esclarecida, partilhada e, com mais frequência do que se julga, solidária e feliz.
E, perante isto, qual é o problema da identidade de género?
Simples: não é conhecimento técnica e cientificamente validado mas dissertação ideológica e politicamente disseminada.
Os Progressistas contestam isto porque, para eles, novos valores se “alevantam”; já para os Diletantes é mais uma polémica que os enfada.
Tanto uns como outros, na prática, acham que os miúdos saberão decidir por si se a identidade de género é uma aprendizagem útil ou não - e isto quando já se sabe que, na maioria dos agrupamentos e escolas, a tal disciplina de "Cidadania" (que se debruça sobre o estudo da identidade de género) veio retirar tempo lectivo às disciplinas de História e Geografia, em que se estuda a identidade nacional, enquanto Estado e Unidade Territorial.
(Sim, é exactamente isso: substituí-se o estudo do país que fomos e somos pelo de conceitos alegóricos e ideológicos.)
Desde há 22 anos que, como professora, assisto a cartilhas e reformas na educação que se traduzem em jovens cada vez menos conhecedores de si próprios (porque não estão habituados à reflexão) e mais dispersos em relação aos outros (porque não praticam a perspectiva).
Daqui resulta que, cada vez mais, eu sou a única pessoa que tudo sabe dentro da sala de aula - não por mérito e esforço próprios mas por fragilidade nos conhecimentos e linearidade nos procedimentos por parte dos alunos.
Foi essencialmente por isso - esse "troféu" de saber artificial e estático - que troquei a Geografia (onde trabalhava, sobretudo, o conhecimento) pela Educação Especial (onde posso trabalhar sobretudo as competências).
E é a partir deste ponto, que vos (nomeadamente aos Progressistas e aos Diletantes) sugiro as seguintes leituras…
A)O manual de orientações para o estudo da identidade de género para o 3ºciclo - que, por exemplo e na pág.283, tem uma ficha muito gira que contempla tópicos que a minha geração teve a sorte de poder discutir no círculo íntimo dos mais próximos [https://www.cig.gov.pt/…/07/3Ciclo_Versao_Digital_FinalR.pdf];
B)O Decreto-Lei 54/2018, relativo à Educação Inclusiva [http://www.dge.mec.pt/…/defa…/files/EEspecial/dl_54_2018.pdf] e o respectivo manual de apoio [http://www.dge.mec.pt/…/EEspe…/manual_de_apoio_a_pratica.pdf];
C)O Decreto-Lei 55/2018, relativo à Flexibilidade Curricular [http://www.dge.mec.pt/…/fi…/Curriculo/AFC/dl_55_2018_afc.pdf]…
… e que depois de o fazerem [se] respondam às seguintes questões:
1)Cabe a um professor (e recorrendo à tal actividade da supra-citada pág.283) dissertar e discutir sobre as opções de vida pessoais e íntimas dos alunos?
E, em caso afirmativo, isso deve ser feito num contexto de grupo (que pode ir até aos 30 alunos)?
2)Cabe a um professor abordar temas que, pelo seu conteúdo e impacto, são privados e, inevitavelmente num contexto de grupo, tratá-los de forma transversal e impessoal?
3)Se os comportamentos pessoais e sociais (ao nível da natalidade ou de novas/diferentes formas de vida)
surgem em diferentes currículos disciplinares (nomeadamente em Geografia e História, nos diferentes ciclos de ensino, sem esquecer a transversalidade do ensino do Português, com o estudo de diferentes obras e, portanto, de diferentes realidades), por que é que é dada primazia à visão ideológica e política da ideologia de género e não à visão científica dessas disciplinas?
4)Como é que alunos cujo sucesso educativo tem de ser garantido pelos docentes – porque é essa a matriz conceptual do decreto-lei relativo à Educação Inclusiva – vão objectivamente adquirir a capacidade descodificadora e desejavelmente selectiva do que é conhecimento e do que é proseletismo?
5)Por que é que o estudo científico das disciplinas é desdobrado em aprendizagens essenciais e o que não o é (daí a razão do respectivo decreto-lei, o que se traduz, objectivamente, na segmentação utilitária do conhecimento) mas a ideologia de género é uma aprendizagem obrigatória?
Ou seja – e caso não tenha ficado claro - por que é que o conhecimento é relativizado mas a ideologia é privilegiada?
O texto é longo e denso?
Pois é.
As consequências do que agora se promove também.
E uma última nota: eu não tenho a veleidade de perceber de direito criminal, mecânica automóvel ou jardinagem.
Não era má ideia que, antes de falar sobre o que se anda a fazer na educação (o que, em Portugal, para o melhor e para o pior, tem implicado sempre um quadro legislativo), muita gente tivesse a humildade de assumir que não vê não só um boi mas uma manada do assunto - é que “achar” não é “saber”...

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