Ainda o Marxismo Cultural



Após o pontapé de saída dado pelo Adolfo Mesquita Nunes na Revista Visão (ao qual respondi aqui), e seguindo o mesmo diapasão, vão-se multiplicando reacções de apoio e reafirmação das teses por aquele explanadas, nomeadamente, que o marxismo cultural é um espantalho da direita musculada do tipo anti-liberal, ou um simples fetiche diletante, e que o discurso de rejeição do marxismo cultural implica uma espécie de demissão dos valores plurais das democracias liberais.

Ora, lamento mas nada disto faz qualquer espécie de sentido. Rejeitam estes comentadores a existência do quê, concretamente, no marxismo cultural? A existência física, por exemplo, dos autores teóricos da Escola de Frankfurt? Certamente que não. As teorias que esses autores advogaram onde defenderam abertamente a necessidade de uma luta cultural pela representação política, e consequente apropriação, das minorias que pretendiam, primeiro, recrutar através da revelação da sua terrível opressão para, depois, as poder libertar numa sociedade marxista verdadeiramente igualitária? Também não, basta ler os autores. Ou negarão estes comentadores-anti-rejeição-do-marxismo-cultural a influência que estas teorias têm na nova esquerda progressista identitária e na qual revelam o seu expoente máximo? Como fazê-lo se aquilo que a esquerda progressista contemporânea põe em prática é precisamente o que os teóricos acima referidos idealizaram? Não será por aí também, certamente, que advém um problema com a designação "marxismo cultural". Finalmente, rejeitarão estes advogados moderados da democracia liberal o peso cada vez maior das teses progressistas identitárias nas democracias liberais ocidentais? Rejeitarão eles a existência da obrigação legal para quotas sexuais nos órgãos electivos democráticos? E nos conselhos de administração das empresas? Rejeitarão eles que existem discriminações positivas face a minorias raciais? Por exemplo, na admissão a universidades europeias e norte-americanas? Rejeitarão eles que tudo isto infringe directamente o princípio liberal de igualdade de todos os indivíduos perante a lei? Ainda, rejeitarão esses comentadores a existência de práticas curriculares dentro das escolas advogando doutrinação moral estilo-LGBT, incluindo a propagação de teorias de género que defendem conceitos - não científicos, atente-se, apenas ideológicos - sobre "fluidez de género"? Porque tudo isto é do campo dos factos. Ora, se nada há de rejeitável nos factos subjacentes à noção de marxismo cultural, e acima referidos, afinal que rejeição vem a ser esta? É ao nome? É que se o problema é o nome isto resolve-se com facilidade: arranjem outra designação que resuma tão bem a coisa como a noção de "marxismo cultural" resume (e que por essa razão está a conquistar espaço mediático) que imagino que a direita musculada também apoiará a nova causa.

Depois, a questão da polarização, ou melhor, sobre os culpados da aparição da polarização, e que estes comentadores moderados vislumbram nos músculos da direita. Aqui, lamento, mas tenho más notícias para a direita anti-músculos: é que os culpados são precisamente eles. A verdade é que a emergência dos músculos à direita deriva directamente da demissão dos centros moderados em eficazmente defender os princípios liberais contra a vaga do progressismo da esquerda. O músculos aparecem agora como reacção a esta vaga que nas últimas décadas colonizou o espaço público e publicado, tal como as Artes e a Academia aprovadas e subsidiadas pelo Estado, e que daí partiu para um estabelecimento moral sobre o que é admissível fazer, ou dizer, e o que não é; ou seja, e é o que testemunhamos hoje, deu-se uma apropriação por parte desta nova esquerda sobre os padrões morais que regem a sociedade. É contra esta apropriação moral que aparecem os músculos à direita. É, aliás, precisamente desta hegemonia cultural do progressismo identitário da esquerda que nasce a problemática do politicamente correcto que, ao contrário do que estes textos anti-músculos direitistas fazem transparecer, não caiu do céu, muito pelo contrário: há razões objectivas para a sua emergência, razões explicadas pelos argumentos acima explanados e que a direita anti-músculos parece ignorar. Aliás, até mesmo a linguagem que utilizamos, ou que - mais grave - somos coagidos a não utilizar, está fortemente condicionada por esta vaga homogeneizadora cultural: o sexo, por exemplo, que passou a género, a raça que passou a etnia ou os feriados de inspiração religiosa que passam a designações laicas, tudo isto faz parte de um movimento cultural de inspiração ideológica no tal marxismo cultural. O mesmo se passa já nas ciências com a crescente intromissão da agenda identitária de esquerda, até já mesmo em assuntos que até aqui pareciam imunes: estudos sobre género, a reclassificação de patologias clínicas como tendências - aqui a disforia de género é um exemplo evidente -, tudo isto deriva de um movimento ideológico que não recua perante nada, que não desiste e que não negoceia enquanto não atingir o  seu intento: uma sociedade igualitária, ultra-regulada, ultra-estatizada e profundamente anti-liberal.

Em suma, o marxismo cultural está aí, é o seu sucesso que gera uma reacção mais musculada à direita (e não o contrário), e o sucesso eleitoral tanto dos primeiros como dos segundos deriva directamente do falhanço dos centros moderados e do seu discurso lírico, utópico, que sonha com instituições democratas e liberais que, sem trabalho, absorvem sozinhas e por si próprias sempre os seus adversários. Esta utopia deriva da noção que as instituições vivem do ar, que se bastam a si próprias, bem como do facto destes teóricos liberais não compreenderem que as instituições dependem sempre de um consenso moral social. É esse consenso que está sob ataque da esquerda identitária, um ataque que utiliza o Estado como braço armado e o progressismo identitário como discurso de conversão. Lamento, mas o consenso moral liberal, o tal pluralismo, não se defende dizendo que o pluralismo derrota sempre os intolerantes anti-pluralismo; pelo contrário, o pluralismo defende-se derrotando os adversários do pluralismo. Popper também explica isto.

Ou seja: foi a demissão dos centros liberais moderados e plurais de atempadamente reconhecer o perigo do identitarismo progressista que criou a polarização a que assistimos hoje. Ao permitirem que os extremos de esquerda, anteriormente relegados para lá do cordão sanitário que protegia o "arco da governação", saltassem para a governação, e daí para o controlo da agenda estatal, para grande prejuízo da ordem liberal, abriram de par em par a caixa de pandora do estatismo. Foi precisamente ao não defenderem intransigentemente os princípios liberais - que imaginam defender-se sozinhos - que os centros entregaram o outro ao bandido.

Posto isto, é hoje, após o triunfo cultural dos ideais progressistas entretanto normalizados (patrulha social do politicamente correcto), formalizados, até mesmo legalizados (quotas, discriminações positivas), que vêm agora os auto-intitulados moderados culpabilizar a direita - aquela direita que rejeita desistir - pela polarização e a desestabilização da ordem liberal? E cometem eles essa vil e torpe injustiça que pretende deslegitimar a direita que resiste à colonização moral da esquerda apenas para continuar a justificar a sua insistência lírica numa receita mole, falhada, e responsável por uma realidade evidente e que se recusam sequer a reconhecer? Ingenuidade é pouco para caracterizar esta posição.

Não é mesmo por aí que devemos ir. Moderação na prática política é uma coisa, moderação na defesa dos princípios da democracia liberal é outra. Não as confundamos. O pluralismo é defendido pela possibilidade de existirem pluralismos políticos, sociais e até morais: e é essa possibilidade que a uniformidade do marxismo cultural visa destruir. Não perceber isto é não perceber o que se está a passar no mundo.

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