Do Pseudo-Liberalismo de Costumes



Deparei-me hoje com um artigo do Alexandre Homem Cristo (AHC) - um ilustre membro dos círculos liberais portugueses - no Observador a propósito da polémica sobre conteúdos LGBT nas escolas portuguesas, em particular numa sessão da ILGA no Agrupamento de Escolas de Santo André que resultou numa polémica entre o Deputado Bruno Vitorino e o BE.
Começa AHC por afirmar que "a iniciativa da escola é inatacável" porque esta se "limitou a cumprir os referenciais do Ministério da Educação, que incluem os temas da igualdade de género e de sensibilização (leia-se aceitação e tolerância) da diversidade de orientações sexuais". Acrescenta AHC que faz todo o sentido que estes temas façam parte dos currículos porque "é mesmo a única forma de levar estes temas aos jovens que, de outra forma, não lhes teriam acesso".
Ora, AHC mistura aqui duas questões distintas: a primeira é se a escola, ou algum professor, extravasou as suas competências ao incluir a temática LGBT nas suas aulas - e, não esquecer, apesar de AHC não o referir, o pedido directo aos alunos para contribuírem com financiamento pecuniário à associação ILGA. A segunda questão é analisar se esses temas devem configurar nos currículos de todo. AHC foca todo o seu argumentário na primeira questão e aceita sem discussão a segunda.
Assegura-nos AHC que nem a escola nem nenhum professor extravasou em nada as suas funções, pelo contrário, segundo ele está tudo de acordo com as directivas do ministério da educação. Curiosamente, deixa de fora a questão do financiamento. Será assim tão regulamentar andar a pedir dinheiro vivo aos alunos em nome de uma associação privada? Se assim é fico admirado e não me parece correcto.
No entanto, mesmo admitindo que regulamentarmente tudo esteja "inatacavelmente" bem, sobra a questão que é verdadeiramente importante e que AHC faz passar quase em surdina por entre os vários artigos e regulamentos com que justifica a conduta da escola: que a sensibilização por parte da escola - qualquer escola - a crianças de onze anos para temáticas de identidade de género e orientação sexual é uma coisa boa porque, e cito de novo, "é mesmo a única forma de levar estes temas aos jovens que, de outra forma, não lhes teriam acesso". Mais: para AHC a educação sexual de género e orientação sexual é uma coisa tão boa que devem ser aceites como naturais os riscos de se ultrapassarem as linhas vermelhas em que sensibilizar pode passa a ser doutrinar. Diz AHC: "esse risco existirá sempre num contexto de autonomia escolar, sobretudo quando participam organizações da sociedade civil – e não se resolve excluindo determinadas associações por via da sua identidade ser mais ou menos favorável a determinada agenda." (itálicos meus). Ora, o que AHC aqui nos diz - preto no branco - é que é preferível corremos o risco de ter associações e professores a doutrinarem crianças sobre ideologia de género do que não termos o Estado através da escola a exercer qualquer tipo de responsabilidade na educação moral das crianças. Porquê? Cito de novo: porque "é mesmo a única forma de levar estes temas aos jovens que, de outra forma, não lhes teriam acesso". Para AHC, ou bem que o Estado assume a função de educar moralmente as crianças ou bem que estas são privadas de qualquer sensibilização moral sobre estas matérias. Um marxista não diria melhor.
Tenho sérias dificuldades com esta posição. Primeiro, relembro, estamos a falar de crianças de onze anos, a defesa das quais deve ser o enfoque da nossa discussão e não simplesmente perceber se a escola cumpriu ou não cumpriu o regulamento. Esta ideia de que perante uma polémica o debate político se deve centrar em saber se a escola, ou quem quer que seja, cumpriu ou não o regulamento é própria de uma discussão numa sala qualquer do ministério da educação. Não é uma discussão política, é uma discussão jurídica e burocrática sobre funcionalismo público. A discussão política que aqui interessa é se concordamos que crianças de onze anos sejam expostas a estas temáticas ou não. E, a concordarmos com tal coisa, se concordamos com que estas temáticas sejam apresentadas por associações privadas LGBT, ainda para mais considerando que, como o próprio AHC admite, existe o risco de que tais sessões possam contribuir para que uma sessão de sensibilização passe a ser uma sessão de doutrinação. Mais ainda, a concordarmos com isto tudo, concordamos com que essas associações peçam directamente dinheiro vivo aos alunos para as suas actividades? Eu começo logo por deixar bem claro que respondo negativamente a todas estas questões. Mais ainda sabendo que os activistas LGBT tendem a advogar ideias que vão muito para lá do simples respeito pelas diferenças, por exemplo, no que concerne a uma apologia do transexualismo consubstanciada numa atitude de normalização face à disforia de género, uma condição gravíssima, que em casos extremos envolve mutilações genitais e terapias violentíssimas, e com consequências definitivas, sobre indivíduos ainda em fase de formação. Do mesmo modo, a ideologia de género veiculada por esses activistas de que os géneros são construções sociais, e por isso fluidos e não biológicos, para além do seu evidente carácter anti-científico - e logo, por aí, não dever ter lugar na Escola - poderá ter sérias repercussões no desenvolvimento de crianças tão jovens. Sobre isto AHC não refere uma linha.
Não obstante, quanto à posição de fundo, discordo por completo da visão estatista de AHC que assume que os conteúdos de sensibilização éticos e morais - sejam eles LGBT ou não - que não sejam veiculados pelas escola não chegam aos alunos. Assim fosse e antes do Estado moderno nunca teria havido educação moral. Ao contrário do que AHC advoga, a educação moral, uma educação impossível de ser homogeneizada em sociedades verdadeiramente democráticas, porque estas são em primeiro lugar plurais, deve estar fora da esfera do Estado. Reclamar a educação moral para o Estado implica assumir que a moralidade dos indivíduos é uma questão pública. Ora, se é pública então ela pode, e deve, ser regulamentada, orientada e, lá está, doutrinada. Assumir que a educação moral das crianças deve estar no Estado implica assumir que a moral social é igualmente definida pelo Estado. Esta última decorre lógica e inexoravelmente da primeira: se o Estado forma moralmente então forma em função de um molde, um molde decidido e definido politicamente e que molda a sociedade sob a égide do carimbo do ministério da educação.
Aliás, é precisamente por esta razão que a extrema-esquerda ultra-estatista gosta tanto das chamadas questões identitárias: porque ao chamar o Estado a definir e regulamentar sobre questões interiores à esfera privada dos indivíduos o Estado ganha poder dentro dessa esfera particular dos indivíduos. O caminho da esquerda estatista é exactamente esse: o Estado dentro da esfera privada das pessoas a regulamentar e organizar a sociedade em função dos sexos, géneros, raças e orientações sexuais dos indivíduos. Como vimos, e com a preciosa ajuda de bem-intencionados como AHC, também teremos a breve trecho o Estado a regulamentar as morais e os bons costumes, primeiro das crianças, depois dos cidadãos. O caminho do autoritarismo, pois claro.
Defendo a via oposta. Defendo que o liberalismo deve ser implementado não apenas na economia, mas ainda mais fundamentalmente nos costumes. Ser liberal nos costumes implica defender o Estado fora da esfera privada dos cidadãos, ou seja, fora da sua intimidade, tal como fora da formação religiosa e moral das crianças. Sensibilizar crianças de onze anos é, em si mesmo, uma forma de doutrinação, neste caso, da doutrina de que é saudável que crianças de onze anos lidem com estes assuntos. Permito-me a discordar dessa ideia, e não será o guião do ministério da educação a fazer-me mudar de ideias.
AHC afirma que toda esta polémica é inútil porque foi pedida a autorização dos pais. Discordo: apenas pelo formulário que foi entregue (junto com um pedido de dinheiro) e pelo facto de a sessão ser apresentada, em parte, o pedido de autorização torna-se irrelevante. Mesmo que os pais recusassem, as crianças já tinham tido que lidar com a temática a priori.
As crianças devem encontrar na escola um espaço seguro, livre de questões e dilemas morais que extravasem, por um lado, a sua idade ou maturidade (que varia) e, por outro, o consenso moral da nossa sociedade: a igualdade de todos perante a lei, a igual dignidade de todos os indivíduos - sem excepção! -, a tolerância como ponto de partida para a relação com o Outro. Mais do que isto será entrar dentro da esfera privada social algo que liberais nos costumes deveriam recusar. Defender o liberalismo implica defender a neutralidade do Estado, logo da Escola, por oposição à esquerda que quer impor uma visão particular a todos - a deles, e que lhes interessa.
Neste debate, um debate fundamental, ou se está do lado Estatista - e se corre o risco de ver o Estado advogar princípios contrários a tudo aquilo em que acreditamos - ou se está do lado da liberdade. Ou seja, do lado da neutralidade moral do Estado e da Escola. Qualquer coisa no meio será, primeiro, um atentado contra o ideário liberal e, depois, um resignado acomodar das pretensões dos grandes adversários contemporâneos da liberdade individual que comandam a extrema-esquerda. O combate liberal é, e nem de outra forma poderia deixar de ser, em primeiro lugar, um combate pela liberdade moral - desde que dentro dos princípios do Estado de Direito - das famílias educarem as suas crianças de acordo com os seus valores, princípios e vontades.



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