O Eu Dividido: Do Liberalismo ao Autoritarismo



Um dos precursores da reacção romântica ao iluminismo, o célebre Sturm and Drang, foi Johann Gottfried Herder, um reputado filósofo, teólogo e ensaísta. Celebrizado pelo seu premiado Ensaio sobre a Origem da Linguagem, Herder, no entanto, sintetizou como poucos a essência do romantismo germânico. Um dos seus pontos de contenção face ao iluminismo francófono é uma ideia que está preconcebida por detrás da mise-en-scène liberal: que a teoria está separada da prática. Esta noção, mesmo que escondida, é fundamental ao pensamento liberal clássico porque este assenta na premissa que a teoria é um elemento racional, logo universalmente válido na sua generalidade abstracta, do qual deriva a prática, ou seja a acção, que sendo inerentemente material e humana encerra dentro de si mesma a condenação da subjectividade. Ora, sendo a teoria universal e a acção subjectiva, por definição, então as duas componentes estarão necessariamente separadas.
Esta separação universal/particular ou objectiva/subjectiva é particularmente evidente em Kant, e dele derivou num dogma que, mesmo inconscientemente, continuamos a acreditar ser válido ainda hoje em dia. Para Kant, a solução moral da Humanidade passa precisamente por alcançar o real, o racional, e daí aferir a validade dos julgamentos práticos subjectivos do dia a dia. Aliás, como o seu imperativo categórico atesta, é mergulhando na suposição sobre qual o comportamento que deveria ser adoptado numa determinada situação pela Humanidade como um todo  - o universal - que se deve decidir sobre qual o comportamento que nessa situação um determinado indivíduo deve prosseguir - o particular. Ou seja, para Kant, o que afere a validade do compartimento subjectivo é a capacidade que cada um de nós tem para aferir da validade racional de tal comportamento.
Há, no entanto, um catch. A partir do momento que o critério é única e exclusivamente racional então qualquer entidade racional é capaz de o proferir. Esta noção de tudo peneirar pela bitola de um suposto critério universal de razão transporta para as nossas vidas a separação universal/particular acima referida: a cada acto, a cada criação, para aferir da sua moralidade é necessário partir do particular para o universal e depois dali de regresso ao particular. Esta dicotomia, uma dicotomia separada como já vimos, transporta para dentro de todos nós um constante diálogo entre os nossos diferentes níveis de identidade: um inferior, subjectivo porque particular, e o outro superior; porque universal e racional. A esta concepção da identidade Isaiah Berlin apelidou de Eu dividido.
A partir do momento em que se divide o Eu, em particular inferindo que a nossa subjectividade está acoplada a uma parte inferior, porque irracional, do nosso ser e que a parte superior, sendo universal, é partilhada, a chave do totalitarismo está encontrada: uma vez que aquilo que é racional é por definição verdadeiro, como algo não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo, então um postulado racional que seja válido para mim deverá também o ser para ti. Se discordares de mim sobre o que é melhor para ti então tu estás cego pelo teu Eu inferior, pelas tuas inclinações animais e subjectivas, e és incapaz de aceder ao teu Eu racional superior. É por aqui que se justificam racionalmente todas as maiores imposições sobre os indivíduos: por pessoas que fruto da sua superior racionalidade sabem melhor do que os outros o que é melhor para todos, inclusive para aqueles mais recalcitrantes e agora subjugados.
Do mesmo modo, é por esta separação entre o universal e o particular ter sido transportada com sucesso para dentro dos indivíduos que, uma vez que todos somos dotados de racionalidade, todos passam a poder julgar todos os outros, independentemente das circunstâncias particulares em que um indivíduo se viu obrigado a agir. Uma vez que o julgamento é universal e abstracto as condicionantes são cada vez menos importantes para que cada um se imagine nos pés do outro: as situações são imaginadas em abstracto, à luz de princípios abstractos, princípios que, precisamente por serem universalmente válidos, devem ser sempre seguidos. Mais ainda, uma vez que a natureza racional de cada um de nós é tida como potencialmente igual então qualquer julgamento que fuja do que se estabeleceu como norma é facilmente invalidado, corrigido, suprimido. De igual forma, se a natureza racional dos indivíduos é igual então o seu bom comportamento deve ser, repetidas as circunstâncias, exactamente igual. Onde antes a estandardização comportamental era derivada de preceitos morais comportamentais de origem teológica passa agora a ser derivada de um suposto padrão universal de racionalidade. Não obstante, a libertação do indivíduo não ocorreu: no Eu que o racionalismo dividiu continua a ser fácil de reinar.
É deste padrão que passa a nascer a autoridade: o teólogo dá então o lugar ao cientista.
No entanto, a separação passa também para o ramo do conhecimento. Uma vez que a teoria, sendo universal, está ligada ao conhecimento superior, porque racional, esta toma então primazia sobre o conhecimento prático que, porque subjectivo, passa a ser entendido como algo que qualquer um consegue fazer desde que tenha aprendido o verdadeiro conhecimento: o teórico. Entramos então na idade do cientismo: de tudo se procura extrair a verdade universal e racional. Uma vez apreendida, a sua aplicação é uma questão de mera prática, como que um conjunto de passos repetidos de um manual. O triunfo desta visão filosófica sobre o mundo, no entanto, é total: esta dinâmica passa a ser aplicada a todas as cambiantes da vida, incluindo a moral, social, política e económica: a solução racional e científica dos problemas está sempre, em tese, ao nosso alcance. Infelizmente, até hoje, sempre ao virar da esquina.
É do Eu-dividido que nasce também a figura do perito capaz de passar julgamento sobre tudo sem ter que ter a obrigação de fazer nada. Onde, no mundo pré-Eu-dividido, apenas os mestres eram capazes de ensinar aos aprendizes passamos então para um mundo onde, como Bernard Shaw reparou, "aqueles que são capazes fazem e aqueles que não são capazes ensinam". O autoritarismo também passa por aqui: por reclamar os louros e capacidades para fora dos indivíduos, para o nível transcendental partilhado do racional. Aliás, pior ainda: onde o Eu-dividido reinar no inconsciente então tudo o que os outros fazem de bom nunca tem verdadeiro valor, não é nada diferente do que eu teria feito se tivesse naquele lugar - mesmo que esse lugar represente décadas de aperfeiçoamento e de árduo trabalho - tal como tudo o que os outros fazem de mau é instintivamente culpado no Eu inferior, logo subjectivo, descartado como características daquele indivíduo em particular. Aproveitamos o bom para todos, porque derivado do Eu-superior que todos partilhamos, e deitamos fora o mau que assumimos como desumano, e próprio de indivíduos particulares que nada têm a ver connosco. No entanto, da mesma forma como a maldade, a perfídia e a vilania são comportamentos intrinsecamente humanos também os grandes feitos do Homem não deixam de ser grandes feitos levados a cabo por indivíduos em particular. Desta inversão que o Eu-dividido permite nasce o pretenso moralismo dos dias de hoje: eu como intérprete fiel do que é Humano e bom passo julgamento, muitas vezes sem saber sobre o que falo; do mesmo modo, é desta inversão derivada do Eu-dividido que se origina um crescente alheamento face à verdadeira natureza (completa) do Homem.
Voltando a Herder, os românticos captaram bem este pre-conceito racionalista que enferma o pensamento tradicional liberal. Herder, por exemplo, assumia que dividir, ou separar, corpo e alma, descrição e avaliação, julgamentos históricos, filosóficos ou científicos de predisposições metafísicas e empíricas, como se umas pudessem existir independentemente das outras, como sendo uma grande falsidade plena de superficialidade e dissimulação. Clamava Herder que em tempos passados, quando a teoria e a prática permaneciam juntas e indivisíveis, os homens haviam sido poetas, filósofos, músicos e guerreiros; depois, após a separação que dividiu os homens em uma metade pensadora e uma outra metade apenas sensível, fica qualquer coisa a faltar quando reparamos que o mundo está cheio de moralistas que não agem, poetas épicos que não são heróis de coisa alguma, oradores que não são homens de Estado e estéticos que não criam nada. O que faz falta é, portanto, recuperar  a completude do ser humano com todos os seus defeitos e virtudes, forças e fraquezas, o Homem tal como ele é. A verdadeira liberdade passa então por nos libertarmos de uma pretensa divisão que nos é imposta em nome de racionalizações abstractas indemonstráveis e percebermos que, por menos que gostemos, com tudo o que de bom e de mau essa ideia traz, os seres humanos são, de facto, quer como grupo quer dentro deste como indivíduos, donos do seu próprio destino, ou seja, donos do seu próprio julgamento. Aquilo que a consciência do Eu-dividido nos ensina, e daí a razão suprema para configurar uma perfeita chave para o autoritarismo, é que não pode haver liberdade sem responsabilidade individual: aquilo que o Eu-dividido faz é roubar a responsabilidade individual e colocá-la numa transcendência racionalista que, como todas, nos deixa à mercê daqueles que se conseguirem afirmar como os seus fiéis intérpretes.
Do mesmo modo, para lá de tudo isto, o dogma racionalista, como todos os dogmas, apresenta ainda sérios perigos apenas por ser um dogma. Diz-nos Herder que uma vez que as doutrinas sejam aceites como verdades absolutas eternas e verdadeiras elas tendem a perder o seu significado e a serem completamente distorcidas; então, essas ossificações morais tendem a decair no absurdo ao nível do pensamento e em comportamentos monstruosos ao nível da prática. Talvez este último aviso seja o mais importante: ainda para mais que coisa mais arriscada há, e bem demonstrada pela História aliás, do que a suposição que os indivíduos podem - e devem - ser oprimidos para o seu próprio bem?

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