Breves Reflexões Sobre o Herói Ocidental



A consciência será o maior mistério que envolve a experiência humana. Ainda por definir de forma adequada, irreplicável, indemonstrável, a consciência confunde-se com a vida, em particular com a humana, onde, aparentemente, uma e outra convivem de forma necessária. No entanto, apesar do mistério, o processo evolutivo do consciente, desde que começado a ser estudado pelos psico-analistas, tem-se revelado como surpreendentemente fecundo na revelação da sua essência: a génese, o amadurecimento e o fenecimento, como em tudo o que vive, são as fases do processo do consciente que revelam uma fórmula que, de uma forma ou de outra, todos seguimos. Este ‘todos’ é importante porque representa mesmo todos: eu, tu, nós, aqueles que vivem, aqueles que já viveram, aqueles que ainda viverão. Abordar o processo de vida da consciência é, então, primeiro, uma história a dois níveis e, depois, também, uma meta-história que norteia todas as histórias. Os níveis são o particular, o meu e o teu, o de cada um de nós, mas também o histórico: o processo evolutivo ancestral que trouxe a humanidade até aqui e que, sem excepção, desde o útero até à morte, todos nós repetimos desde o unicelular, passando por todas as fases evolutivas, culminando no desenvolvimento intelectual e emocional, todo um processo que representa uma acumulação milenar e onde apenas, com sorte, lhe acrescentamos um pequeno grão de areia da nossa própria responsabilidade no final. Na sua súmula, o processo acumula todos esses grãos de areia que, milhões de anos depois, contam uma história. Essa história é-nos forçosamente familiar pois que conta também grande parte da nossa história particular. A convergência do nível histórico com o subjectivo e particular de uma mesma narrativa atesta o postulado acima pronunciado de que o processo de vida da consciência desenrola-se também numa meta-história: o nível abstracto, universal para quem partilha da nossa condição humana, que contém dentro de si o processo que representa, em simultâneo, a fonte e a soma de todas as pequenas narrativas históricas e pessoais.
O ponto de partida da narrativa do consciente é o uroborus. O uroborus é a imagem conceptual que representa o início, o ponto Alfa desta narrativa; no entanto, representa também o seu fim, o ponto Omega. É circular, pois não tem princípio nem fim, ou melhor, todos os pontos são simultaneamente o seu princípio e o seu fim. Em harmonia, os opostos convivem: o bem e o mal, o princípio e o fim, a criação e a destruição. A consciência é, e nasce, no uroborus: contida no círculo primordial, em estática e perpétua harmonia com a criação no seu estado puro, o Ego que dará origem ao indíviduo está ainda plenamente contido na Grande Mãe. No início, o Ego – a entidade que começa a reflectir – quando recém-nascido não se distingue da sua mãe: no uroborus, um e outro, são uma e a mesma coisa. Para que se distinga, o Ego tem que se afirmar; para afirmar-se, tem que assumir uma contradição, uma separação, da Grande Mãe que o criou e que, no uroborus, o contém. Eventualmente, essa separação ocorre contra a vontade de ambos: a Grande Mãe que não quer perder aquilo que lhe pertence, o Ego que não quer enfrentar a adversidade do mundo pós-uterino, um mundo pejado de opostos, contradições e tragédia: enfrentar as agruras da vida e a inevitabilidade da morte, ou seja, a implacável queda do paraíso. Assim, a tendência é de a cada adversidade, o Ego querer regressar ao conforto do útero primordial. Esse regresso implica o retorno à condição de absoluta igualdade, o esbater das diferenças, a conformidade perpétua e permanente com a inacção do uroborus – o fim das tensões causadas pelos atritos inerentes a um mundo limitado por opostos. Do mesmo modo, o afastar-se da origem, ou seja, o mergulhar no mundo, implica o oposto: a diferença, as tensões, os conflitos, a criação – em suma, a responsabilidade da liberdade. Logo aqui, no primeiro salto mortal do Ego-Herói, encontramos a sua primeira árdua tarefa: a troca do conforto infantil do útero materno pela aventura violenta do embate com o mundo.
No entanto, o uroborus, simbolizando a completude, incorpora necessariamente também a noção de final, o telos, a ideia de destino. Isto porque o Ego, uma vez amadurecido, tal como o herói que, respondendo ao chamamento da aventura, sai do conforto do lar para ir travar uma batalha contra o Caos e o desconhecido e que, no final, regressa a casa com os despojos da vitória, também o Ego sai do uroborus para afirmar-se por si próprio no Caos, e regressar com o prémio maior da consciência de si próprio. Aí, integrado no seu auto-equilíbrio, com a tranquilidade do dever cumprido, o Ego maduro e bem-sucedido, eventualmente, regressará ao caldo primordial do uroborus. Alfa e Omega, Vida e Morte, não pela desistência das suas tarefas e uma procura do conforto materno mas, pelo contrário, através da integração dos opostos que existem em si, e em redor de si próprio, num equilíbrio conquistado e que reflecte o amadurecimento do carácter. Amadurecimento implica um aprofundamento da consciência, ou seja, um aumento da capacidade reflectiva do Ego face a si próprio e à realidade das coisas. Nesta realidade inclui-se, forçosamente, o próprio processo, ou mesmo meta-processo, que o Ego experiencia. Qual o telos então? Novos equilíbrios entre opostos conquistados através da criação e da acção – da actividade – ao invés do equilíbrio inactivo e passivo do caldo primordial. Amadurecer a consciência significa alargá-la, integrá-la, expandi-la, através de um processo constante de integração no consciente do inconsciente, em particular daquilo que, apesar de inconsciente e desconhecido, nos afecta directamente, e daí, dessa integração do novo, gerar novos equilíbrios, mas equilíbrios derivados da nossa conduta, sendo, portanto, da nossa responsabilidade, frutos da nossa liberdade.
Há a registar, pelo caminho, o falo como símbolo de poder, o único poder que contrapõe o poder supremo da Grande Mãe que se explana, como vimos, logo a priori na criação. Daí que, primeiro, as deusas dos homens, por representarem a Grande Mãe, para mais evidenciar o seu carácter divino, criavam sem fertilização: por imaculada concepção. Do outro lado da criação, num segundo momento, o falo sempre foi motivo de cobiça, fonte de poder masculino e símbolo do sacrifício máximo que se poderia oferecer à Grande Mãe: a castração. Esta oferenda que transformava o masculino em feminino, a Grande Mãe aceita-a por representar o regresso antecipado do Ego à sua influência, bem como ao uroborus primordial onde o Ego se revela como indistinto da Grande Mãe. Há, então, algo de retorno ao infantil, porque representa também um retorno ao primordial sem distinção sexual, quando o falo se torna oferenda à Grande Mãe: oferece-se o poder de fecundação e, com ele, a recusa da autonomia do Ego face à sua criadora. O fim, portanto, permanece o mesmo: o regresso ao uroborus, apenas que antecipado, fruto da interrupção do percurso natural do Ego-Herói, um Ego emasculado e amputado, dócil e infantil – o anti-herói.
Esta masculinização da criação que, primeiro, é feminina no seu primeiro acto – o de fazer nascer luz nas trevas inóspitas do deserto sem reflexão consciente – e, depois, hermafrodita no seu caldo primordial – não havendo opostos não há lugar para distinção entre masculino e feminino – culmina, no final, com uma noção de certo modo patriarcal que se desenrola na aplicação prática da sociedade hierárquica das primeiras civilizações. Aliás, é precisamente na mitologia dessas civilizações primeiras que se reconta a forma como o matriarcado biológico deu lugar, com o tempo, ao patriarcado social. O patriarcado, no entanto, não deixa de reflectir o poder primordial da Grande Mãe, a fonte da criação mas também da destruição. O patriarcado procura a ordem e a hierarquia, algo apenas possível já fora do uroborus, ou seja, e por definição, algo já lançado no mundo e que, por ser lançado no mundo, se afirma contra a força gravítica primordial que, por medo, apela à inacção. Neste sentido, o falo pode representar a rebeldia face ao caldo urobórico assexuado que lhe está na origem.
A tarefa primeira do acto consciente é reflectir, ou seja, como um espelho que reproduz imagens do real, a consciência procura apreender o mundo, reflectindo-o na mente de quem exerce o acto consciente. Na prática, o acto consciente é um acto de aprendizagem sobre o mundo, um acto de conquista de conhecimento. Não é, então, nem poderia ser, um acto de imaginação sobre o que esse mundo deveria ser: primeiro, estabelece-se o que é, depois, em função do que é, e das dificuldades que aquilo que é tem, na medida em que são reconhecidas pelo Ego como tal, então imagina-se o que poderia ser. Do que é para o que pode ser é o passo do Ego que nasce e que, crescendo, encontra no mundo um chamamento para uma aventura: a de transformar esse mundo que encontrou. Esta mudança ocorre, mesmo que não se responda a chamamento algum: por vezes, o acto de transformação decorre de forma imediata pelo simples facto de o indivíduo existir e, por existir, causar alterações no mundo que o envolve que, naturalmente, o afectarão. Seja por resposta a um chamamento idealista de mudar o que vemos como mal, seja por reacção ao mundo que se mexe e remexe no ponto onde o indivíduo está, de uma forma ou de outra, o mundo não é o caldo de tranquilidade do útero urobórico, muito pelo contrário, é uma aventura constante.
Esta aventura cansa, destrói e mata. Nem todos têm força e vontade para a levar até ao seu final destino. Quando não o fazem, o processo de amadurecimento da consciência é interrompido. Aqui, não significa que a morte venha levar de regresso o Ego ao caldo primordial de onde ele havia saído – o uroborus. Não, significa apenas que o processo de enriquecimento do Ego cessou e que, enquistado, cristalizado num determinado estado, o Ego passou a fazer parte do mundo, reflectindo-o em si próprio, na passividade de mais um ornamento, instrumento ou, quiçá, obstáculo para os outros Egos que perseguem os objectivos que esse Ego, agora cristalizado em mais um grão de areia, um dia também já tinha perseguido.
A desistência, ou a derrota, resulta então na recusa da aventura do mundo e no soçobrar face aos chamamento gravítico, emasculante, da Grande Mãe para regressar ao paraíso primordial do uroborus. No entanto, porque ao Ego uma vez dado o dom da vida autónoma lhe está vedado o regresso ao caldo primordial, sobra então enfrentar o mundo com a coragem do dever por cumprir ou, por alternativa, como muitos, na desistência auto-consumir a energia que lhe reste num espectáculo de triste ressentimento para com o final que, por fraqueza, acabou por ser o seu.
Se é de uma meta-narrativa de que falamos então a história deverá ser fiel, como já foi dito, a vários níveis: primeiro, o individual ou subjectivo. Aqui, falamos de um indivíduo em particular que nasce, cresce e enfrenta as agruras da vida, ganhando ou perdendo umas ou outras batalhas, finalizando a obra de arte que é a sua própria vida com um de dois destinos: a desistência ou a integração dos seus próprios demónios na criação de novos passos na grande cadeia da evolução humana. Depois, o nível histórico ou colectivo: uma espécie, no caso a humana, que nasceu, cresceu, amadureceu e que enfrenta as agruras do mundo com maior ou menor sucesso. Essa também é a nossa história subjectiva. Mas existem também níveis intermédios como, por exemplo, o civilizacional: subjectivos na medida em que não configuram uma totalidade objectiva e universal da condição humana – há várias civilizações muito diferentes dentre si – mas, não obstante, ainda colectivos para representarem, primeiro, um processo de nascimento, crescimento e fenecimento colectivo, e, depois, terem espaço para triunfo e derrota, glória e tragédia própria das histórias subjectivas.
A nossa civilização nasceu, cresceu, afirmou-se e dominou o mundo. Se agora declina e cai ou continua a afirmar-se é uma questão em aberto. No entanto, duas notas sobre os dias ocidentais de hoje. Primeiro, a recusa do falo, ou seja, a recusa da masculinidade; depois, a perseguição obsessiva do ideal da igualdade. Pelas razões que acima se enumeraram ambas as características representam um soçobrar face ao chamamento infantil do paraíso primordial do uroborus. A recusa do falo, ou a ideologia da masculinidade tóxica, representa a recusa da conquista do desconhecido, da coragem da afirmação no mundo, do combate, da discussão, da tensão entre ideias opostas; também aqui se insere a recusa do discurso livre, a indignação atávica com as ofensas face ao politicamente correcto, tudo em nome da harmonia, da ausência de conflitos, uma harmonia e paz que para serem conquistadas implicam por definição a mais pura das inacções: o uroborus, pois claro. Os homens querem-se, então, iguais às mulheres, e estas iguais aos homens, sem diferenças, sejam elas físicas, biológicas, psicológicas. Casas de banho mistas, fardas mistas, uma caldeirada de igualdade onde, além da recusa do masculino, se age em função do esbatimento das diferenças, sejam elas sexuais, sociais, económicas, mentais, psicológicas ou funcionais. A igualdade do uroborus, por oposição à liberdade do mundo que queremos conquistar, acompanhada da irresponsabilidade da desistência por oposição à responsabilidade individual no processo de conquista do desconhecido. Em suma? Querem matar o herói ocidental como bode expiatório do ressentimento que esses espíritos mais débeis sentem por não terem a capacidade de agirem enquanto verdadeiros heróis. Preferem o colo maternal, mas, pior, pretendem impor essa desistência ignóbil, e esse colo, como modelos de virtude ascética e moral civilizacional. Da preguiçosa e irresponsável desistência individual pretendem obter uma desistência colectiva que justifique a sua fraqueza individual.
Este processo de recusa das características vitais civilizacionais – foquei apenas duas, mas poderia abundar em mais, no campo dos valores, por exemplo – é claramente uma desistência face ao chamamento gravítico do caos primordial. Seja por tédio e aborrecimento, seja por subjugação à pulsão destruidora que desde o uroborus carregamos dentro de nós, seja por capricho, ignorância ou preguiça, tudo vícios perniciosos que caberia ao herói dominar dentro de si próprio, estas modas aparentam transportar dentro de si próprias as sementes da derrota, uma derrota interna, psicológica, uma derrota na força e coragem anímica que carregaram esta civilização.
Sobra a dúvida se, perante o caruncho civilizacional da autodestruição, ainda resta no Ocidente a capacidade de regeneração que nos leve para uma nova fase no nosso fabuloso percurso de criação humana ou se, por oposição, no pântano da fraqueza, o destino colectivo civilizacional é o de nos transformarmos num bando de fracos emasculados, maricas chorões, infantes mimados, um coro de indignados, histéricos e patetas, ridículos homúnculos, tristes e ignóbeis figurinhas, todos a ansiar pelo colinho primordial da Grande Mãe, e todos indignos dos esforços dos nossos antepassados que, sabendo eles, imagina-se, chorariam de vergonha, perante tamanho cenário. Ainda haverá espaço no Ocidente para os Heróis que enfrentam o mundo? A resposta será que sim: o maior heroísmo dos dias de hoje será precisamente o corajoso enfrentar desse caruncho fascista-igualitarista que corrói e destrói as grandes instituições ocidentais.

Comentários