Marxismo Cultural, Polarização e Democracia Liberal



Ontem, escreveu o Adolfo Mesquita Nunes (AMN) um artigo na Revista Visão intitulado "Marxismo cultural". Diz-nos o AMN que "[a] polarização moral do debate político, em que dois lados se confrontam na presunção de que representam a única verdade politicamente aceitável, é um dos traços característicos destes tempos." Sobre isso estaremos certamente de acordo, aliás, sobre isso mesmo e as razões que estão na origem dessa polarização escrevi eu também já um pequeno artigo que intitulei "O Fim da Democracia Liberal." Onde não estarei de acordo com o AMN é precisamente quanto às razões que estão na origem dessa polarização.
Diz o AMN que o extremar de posições ocorre porque ao extremismo da esquerda identitária se contrapôs um extremismo da direita, igualmente pouco democrático ("musculado", é o termo que AMN utiliza) e igualmente identitário. Resume AMN: "essa direita armada em musculada ainda não se apercebeu de que é ela o seguro de vida da extrema-esquerda. A extrema-esquerda precisa, deseja, chama, até, pela direita musculada, para justificar a sua existência; o que na prática transforma tal direita, e não deixa de ser irónico, na idiota útil disto tudo". E de onde vem para AMN essa direita extremada e musculada? "[P]artindo de uma justíssima recusa do politicamente correto, cavalgam a imposição de um novo código, que é o do combate ao marxismo cultural. A conversa do marxismo cultural não é senão a substituição de um politicamente correto por outro, e que serve, como aquele, para perseguir, criticar, isolar quem ousa sair do cânone. Marxismo cultural, gritam, ao menor sinal, ao menor gesto, apontando, julgando: se não concordas connosco, és um marxista." Ou seja, para AMN "marxismo cultural", é apenas uma "conversa", uma historieta que se conta, ou se atira em debate, com o intuito de agredir a esquerda politicamente correcta e, dessa forma, aprofundar a polarização maniqueísta no seio das democracias liberais contemporâneas. Aliás, de acordo com as suas palavras, para AMN, a causa maior da polarização não será sequer a existência do marxismo cultural mas, por oposição, a acção dessa direita musculada que justifica, e causa, a reacção igualmente musculada da esquerda.
Ora, se será até verdade que o epíteto "marxismo cultural" é utilizado como arma retórica na arena política, não o negarei, não será, no entanto, verdade que o marxismo cultural se resuma a isso. Muito pelo contrário: lá porque alguma direita identitária - ao estilo PNR - se apropriou desse termo para nomear os seus adversários de centro e de esquerda, isso não significa que, primeiro, e como o AMN parece deixar entrelinhas, o marxismo cultural não exista para lá da retórica dessa tal direita musculada, como, depois, que essa existência não tenha efeitos práticos perniciosos na sociedade contemporânea, em particular para a defesa da democracia liberal - um objectivo fundamental que partilho com AMN.
No que consiste esse marxismo cultural então? Ora, e em resumo, consiste num conjunto de princípios sucedâneos do tradicional marxismo que defendem a noção do Estado como o garante da construção do futuro, e verdadeiro, homem livre, tal como de uma sociedade libertada de desigualdades económicas, sociais e, também e principalmente, morais. São, em boa verdade, os velhinhos princípios marxistas apenas que agora, por interesse estratégico, transvestidos de políticas identitárias, razão pela qual vemos, no caso português, o PCP e BE tão empenhados nestas causas de construtivismo social. A razão para esta mudança de estratégia marxista assenta no facto de, durante a segunda metade do Século XX, ao compreenderem que a classe operária que supostamente queriam defender, e orientar, estava satisfeita com a vida material que conquistara beneficiando então directamente da maior criação de riqueza que a história da Humanidade alguma vez viu, para manter intactas as suas ambições de conquista de controlo social, precisaram então os marxistas de encontrar, primeiro, novos "oprimidos" para libertar e, depois, novos conceitos para descrever o status quo liberal que pretendiam substituir. Assim, nasceu a noção de opressão do patriarcado, branco e masculino, o grande inimigo das minorias oprimidas: os não-brancos, as mulheres, os homossexuais, etc., etc., cuja opressão justifica hoje uma constante e permanentemente incremental ingerência do Estado na sociedade. Discriminação positiva de minorias, quotas laborais e electivas, limites à liberdade de expressão, educação moral de género na escola, tudo isto são instrumentos que, de forma mais directa ou indirecta, devem a sua existência à vontade de substituir o fundamento da democracia liberal - que estabelece que todos os indivíduos são iguais perante a lei e o Estado é moralmente neutro perante eles - pelo fundamento socialista - onde é o Estado que organiza, tutela e modela a sociedade face a um particular ideal moral. Este ideal neo-marxista, na dificuldade de sucesso eleitorial em democracias materialmente prósperas no Século XX, tem sido infiltrado já desde os anos sessenta desse século nos Estados ocidentais através da academia, das artes, da cultura, sendo daí que se junta à noção de marxismo o epíteto de "cultural".  Em suma, assim como se avança a causa progressista com as soluções sempre estatistas e centralizadoras, assim também avança a agenda comunista e estatista, primeiro pela cultura, depois pela acção do Estado que vem corresponder às necessidades criadas pela vanguarda cultural.
Ora, assim sendo, e ao contrário do que parece advogar o AMN, o marxismo cultural não pode ser resumido a um instrumento retórico de quem quer que seja. Muito pelo contrário, o marxismo cultural é o grande adversário à esquerda da democracia liberal - e não é por haver uma direita musculada a identificar correctamente a existência desse adversário que o adversário deixa de ter valor. Pior ainda: com o sucesso que conquistou no campo cultural, aliado ao momento menos positivo em termos de perspectivas de futuro materiais das agora envelhecidas e endividadas democracias liberais, o perigo nunca foi tão grande.
AMN norteia todo o seu discurso para rejeitar essa direita musculada que na ânsia de derrotar o marxismo cultural parece não se importar de deitar fora os princípios liberais. Diz ele que "como se à democracia liberal, a minha, não lhe restasse senão deitar-se com os seus doces inimigos para acordar aniquilada. Como se não nos restasse alternativa senão aceitar ataques à liberdade de expressão, à liberdade académica, à liberdade religiosa, à liberdade política, tudo em nome da aniquilação da conspiração esquerdista". Terá razão quanto a uma direita ultramontana ou identitária tipo PNR e saudosista de Oliveira Salazar (em Portugal, diga-se, ultra minoritária e, atente-se, sem qualquer representação parlamentar). No entanto, lamento, mas o marxismo cultural que AMN parece desprezar como um epíteto irritante com o qual tem sido assolado politicamente representa, neste momento, um perigo muito maior do que esse suposto pequeno músculo extremado à direita. Aliás, tanto assim é que os seus proponentes partidários (BE, PCP e parte do PS) têm maioria parlamentar em Portugal, controlam os ministérios e governam efectivamente o país. Ou seja, e ao contrário do que todo o artigo de AMN deixa transparecer, a polarização a que vamos assistindo deriva precisamente de um extremar de posições que é apenas a consequência natural do grau de radicalismo que passou a nortear a agenda da esquerda progressista em Portugal, e tão evidente em Portugal na quebra do histórico cordão sanitário do regime e a consequente inclusão pela mão do PS da extrema-esquerda nacional na vida governamental.
Aquilo que parece escapar a AMN é que o centro liberal deve rejeitar todas as afrontas contra a democracia liberal venham elas de onde vierem. Tal desiderato passa por uma afirmação sem concessões dos princípios liberais, princípios os quais são nos dias de hoje fundamentalmente postos em causa pela hegemonia cultural da esquerda progressista, por exemplo na comunicação social, que a todo o custo pretende impor culturalmente um novo conjunto de valores, valores os quais, ao pretenderem substituir os velhinhos valores liberais, justificam a intrusão estatizante na sociedade a que vamos paulatinamente assistindo. Tal como já tive oportunidade de lembrar antes, é neste campo dos valores que se faz a defesa da nossa ordem liberal: sejam os advogados do marxismo cultural bem sucedidos e será o fim das democracias liberais; não através de uma qualquer revolução sangrenta, não por qualquer conspiração comunista, mas porque acabarão as maiorias a desejar, tal como Wilson nas páginas finais do 1984 de George Orwell, o amor do Grande Irmão - a salvação pelo Estado, pois claro. O facto de AMN se sentir isolado na defesa da democracia liberal deveria ser uma pista sobre o momento delicado que atravessamos. Infelizmente, apesar disso, não me parece que AMN tenha correctamente identificado o verdadeiro inimigo da ordem liberal contemporânea.

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